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Não, não foi uma réplica telúrica do sismo que abalou Lisboa em 1755. Mas pareceu. Foram antes as declarações do dr. Mário Soares a propósito da morte de Eusébio da Silva Ferreira, o "Pantera Negra" que, para muitos comentadores, abalaram o país. Verdade seja dita que a Comunicação Social mais responsável tratou estas declarações do ex-presidente da República pelo seu lado positivo - aquele que qualquer cidadão isento delas retém. Mas já o mesmo não se passou ao nível de muitos comentadores com quem nos cruzamos na Comunicação Social, nem ao nível da maioria das avaliações feitas nas redes sociais. Para estes, Mário Soares cometeu um crime de lesa-pátria no seu elogio fúnebre a Eusébio. Seja por exacerbada paixão clubística, seja por sectarismo partidário ou mesmo por falta de tema novo para as suas crónicas, a verdade é que os comentários feitos são desproporcionados ao conteúdo das declarações prestadas.
Mas o que disse, então, o dr. Mário Soares? Desde logo, que nunca foi "um grande amante do futebol". Excluía-se, assim, do rol daqueles que apenas avaliavam Eusébio como génio de um desporto que, a ele, pouco dizia. Eu mesmo sou testemunha desse seu desapego pelo desporto-rei.
Na sua qualidade de presidente da República, presidiu por dever de ofício às finais da Taça de Portugal no estádio do Jamor. Porque à época eu desempenhava as funções de presidente da Câmara do Porto, fiquei a seu lado de todas as vezes que o Futebol Clube do Porto ou o Boavista disputaram uma final. As conversas durante o jogo versavam sobre tudo, menos sobre o que se estava a passar no relvado. Lembro-me de numa dessas finais ter havido necessidade de se recorrer a prolongamento, o que para ele era uma novidade, e de me ter perguntado com ar ensonado quanto tempo mais ainda era preciso "aguentar". O desporto, mas sobretudo o futebol, nunca o motivou.
Mas, além disto, o que disse mais Mário Soares? Disse que Eusébio era "uma pessoa simples, pouco instruído, mas uma pessoa que era muito agradável, nada vaidoso, apesar de ter sido um grande futebolista e um grande homem do futebol". Que "era um homem bom, um homem agradável, com pouca cultura. Evidentemente não se estava à espera que fosse um pensador, estava-se à espera que fosse um grande homem do futebol, o que foi. Fiquei sempre com a ideia de que era um homem muito interessante e muito simpático".
Referiu-se, depois, aos almoços agradáveis que teve com Eusébio, avaliando-o sempre como "homem interessante e muito simpático". Até aqui, nada que pudesse ter exacerbado os ânimos do mais sectário dos cidadãos ou motivado crónicas aos sem-assunto.
A agitação decorre do que vem a seguir. "Eu não sabia nada é que ele estava doente e sabia que ele bebia muito whisky, todos os dias, de manhã e à tarde, isso eu sabia, mas julguei que isso não lhe fizesse assim mal... foi para mim uma surpresa". O que enfureceu aqueles que se pronunciaram sobre estas declarações foi o facto de Soares não ter sido politicamente correto quando se referiu a Eusébio. Ora a verdade é que muitos dos que hoje o criticam por ter dito o que pensa o aplaudiram quando declarou meter o socialismo na gaveta ou quando, de novo sendo politicamente incorreto, se dirigiu a um elemento da GNR que diligentemente procurava abrir o trânsito durante uma das suas presidências abertas ordenando-lhe que desaparecesse por não querer ali polícia.
Eusébio foi, sobretudo para as pessoas da minha geração, um ídolo, uma referência. E deu-nos muitas alegrias num tempo em que os portugueses tinham poucas razões para sorrir. Mas, como muitos de nós, teve as suas debilidades, as suas fraquezas, que os que agora criticam o ex-presidente não ignoram. Soares foi, apenas e uma vez mais, o que sempre foi - autêntico, genuíno, espontâneo. As suas palavras refletem simpatia e apreço pelo homem simples e bom que Eusébio foi e só quem não o conhece pode atribuir--lhe pérfidas intenções.
Mário Soares não precisa que eu o defenda. Toda a sua vida fala por si. Mas eu, que o conheço muito bem, não posso pactuar com as avaliações distorcidas que alguns fazem das suas declarações nem com os julgamentos mesquinhos que delas decorrem. A polémica tem sido alimentada de forma hipócrita e pouco digna. E a memória de Eusébio não o merece.