<p>Era um dia daqueles em que o mundo está longe, em que nada nos parece afectar, em que aguentamos silêncios e abandonos, em que esquecemos salas de espera do hospital e horas do antibiótico.</p>
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Em que precisamos apenas de quem também precisa de nós.
Em que descobrimos que nos damos muito bem connosco, e que Lisboa em Agosto é o que mais se assemelha ao paraíso - e se for numa esplanada com o Tejo ao fundo, é quase o nirvana.
Um velho amigo tinha combinado um almoço, a conversa decorreu até quase às quatro da tarde, e aí ele lembrou-se de uma coisa que tinha de escrever e lá foi, e eu andei a pé, a embebedar-me de sol e rio até que dei comigo diante do Museu da Electricidade, com a exposição da Maria Callas anunciada em grandes painéis. Entro, e por lá ando no escuro dos corredores, com a sua voz a acompanhar-me, a Callas desde os seus tempos de menina, as fotografias, as cartas ("Battista mio, sono felice",escreve em Novembro de 47 ao Sr.Meneghini, com quem viria a casar dois anos depois), as ofertas, os vestidos, os recortes da imprensa, os programas, os contratos, os telegramas-até que desemboco numa sala dedicada à sua passagem por Lisboa, em Março de 58.
Sento-me - e de repente acabei de fazer 15 anos e estou à porta do Hotel Avis. Chove, faz vento, e eu tento convencer o porteiro a deixar-me ficar lá dentro até que ela chegue, e eu a veja e lhe estenda o meu livro de autógrafos. Vou ouvi-la no dia seguinte ao São Carlos. Mas o porteiro está habituado a lidar com celebridades. Sorri e diz-me que o mais certo é ela chegar tarde, maldisposta, a odiar a humanidade, e a querer que a deixem em paz.
Insisto. Ele diz que, por ele, até nem vê problema mas, acrescenta, "se fosse à menina, eu ia recordá-la apenas por aquilo que vai ver amanhã no palco. A Maria Callas é isso - e não esta cliente do nosso hotel."
Ainda hoje me lembro desta conversa- e por ela lhe fiquei sempre grata. E sobretudo pelo remate: "A menina deixe cá ficar o seu livro, e um dia destes venha buscá-lo. Eu consigo que ela o assine."
Conseguiu. E na verdade o que me ficou na memória foi a maravilha daquela "Traviata", a primeira que eu ouvi, a música, os fatos, os cenários, o perfume da sala -- e as palmas, aquelas palmas que pareciam não acabar nunca (há quem jure que houve 42 chamadas ao palco.)
E que, nas minhas mãos, duram até hoje.