Corpo do artigo
Primeiro, alguns foram classificados como traidores, depois eram todos traidores, "aqueles" que corrompiam os puros. "Eles" eram a quinta coluna. "Eles" tinham de ser postos na ordem, porque "eles" punham em causa a existência dos justos. A resposta seria sempre justa, mesmo que para "outros" pudesse parecer cruel e criminosa.
Começou-se pelas elites. Foram detidas, intelectuais presos, os militares desarmados, física e moralmente. Depois, todos assassinados, antes, devidamente humilhados (porque, às vezes, também se pode matar a alma). As cabeças que mais pensam, é bem sabido, são muito perigosas, podem querer revoltar-se perante a infâmia e a maldade.
Depois, passou-se aos restantes. Homens separados das mulheres e crianças. Aqueles, os primeiros a serem "solucionados" (só se falou assim mais tarde). As mulheres e as crianças, fora de suas casas, as velhas, os doentes, todos fora. Todos em coluna, e vamos lá para o deserto. As armas, a violência, a fome, a sede, os assaltantes, deles se encarregarão. E, "chut"!, silêncio. Silêncio...
Os mandantes bem tentaram, mas nem assim a coisa era disfarçável. Há cem anos, mesmo quando se queria esconder, mesmo quando era longe, já não era fácil. Há sempre a instrução que fica registada; há sempre alguém que tira fotografias; há sempre quem conte. E, depois, há o vazio e o silêncio, aqueles que mais acusam. Onde estão bem mais de um milhão de pessoas? Para onde foram? Turcos, que fizestes? Curdos, que fizestes? Onde estão? De quem são essas jovens, essas crianças que tendes? De onde vieram? Como casastes com elas? Porque as adotastes? O pai dessa criança? A mãe, onde está?
Dez anos antes, em 1905, tinha sido "concluído" outro genocídio, também muito longe, lá onde a terra tem agora Namíbia no nome. Os Hereros e os Namaqua, exterminados. Quarenta anos depois, iria conhecer-se mais um genocídio, cometido pelo Terceiro Reich. O Segundo Reich, esse, ficou com este sangue negro nas mãos. E ainda hoje o Parlamento alemão recusa que tenha sido genocídio. Foram só massacres.
Não havia ainda as normas de proteção da população civil. Assim não há reparação a prestar. Ainda bem, disse-se. Nestas questões das colónias, cerrar fileiras. Os portugueses, os belgas, os ingleses ainda nos vão agradecer, também tiveram umas maçadas. Pois é. O Direito às vezes, para ser Direito, também escreve por linhas tortas.
Há cem anos, começou o genocídio dos arménios naquela que é hoje a Turquia. E a Turquia ainda diz que não, senhor, não foi genocídio. Foram "só" massacres. Onde é que já se ouviu isto? Sim, é verdade, uma tragédia. Mas genocídio? Vontade de acabar com os arménios? Não.
Cem anos a dizer "não "vos" quis matar". Cem anos a matar duas vezes.