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Declaração de interesses: sou católica apostólica Romana e tenho uma forte devoção Mariana. Vou e gosto de rezar no Santuário de Fátima. Nunca fiz uma peregrinação a pé. E é aqui que começa a minha inquietação. É que, na verdade, nunca quis ir a pé ao Santuário não porque tenha uma especial reflexão doutrinária a respeito mas simplesmente porque não consigo conviver com a ideia de milhares de peregrinos espalhados por uma estrada nacional à mercê de carros e camiões, por bermas atulhadas de lixo onde à vez se encavalitam tendas de apoio ou tendas de comes e bebes.
Não digo isto de ver em fotos. Digo por ter visto tudo isto concentrado na última etapa (que uma vez percorri) do caminho de Norte para Sul antes da chegada ao Santuário.
Em vez de rezar, de cantar ou de pensar, apenas me indignei. Em vez de chegar ao Santuário espiritualmente pacificada, cheguei furiosa e com o cérebro a latejar com a mesma pergunta: "como é possível???".
Zangou-me vivamente a ideia de que 96 anos e milhões de passos depois de uma certa tarde de maio não se encontrasse uma solução segura, ordenada e harmoniosa para encaminhar todos os que, pelas mais diversas razões, desde aí rumam à Senhora.
Esta minha "zanga" não tem destinatários isolados. Até porque a solidariedade e o trabalho voluntário são exemplares apesar das condições físicas em que se desenrolam.
Mas impõe uma reflexão, naturalmente com uma grande quota-parte de decisão na mão dos poderes públicos nacionais e locais e, naturalmente, da Igreja Católica portuguesa.
Vejamos:
1. Não é possível relegar para o campo das simples manifestações populares espontâneas ou microlocais o que todos os anos acontece, espalhado entre maio e outubro, mas sobretudo na Peregrinação Aniversária de maio;
2. Nenhuma outra manifestação popular de caráter religioso ou profano coloca 37 mil pessoas na estrada sobretudo de Norte para Sul (números de 2013) numa só semana do ano;
3. Não pode ser desvalorizada, do ponto de vista da sua organização física, por nenhum argumento de laicidade do Estado. Em última instância, o Estado é laico mas o povo não.
Precisa, sim, de um urgente planeamento e reorganização.
São dois os grandes momentos em que esta necessidade se impõe. O caminho da peregrinação e o local de destino. Neste, parece-me ser já grande a evolução. O acolhimento dos peregrinos e a organização das grandes celebrações são hoje geridas pela Reitoria do Santuário de Fátima de uma forma crescentemente qualificada.
É o caminho, esse chão de peregrinação pelo qual a Europa também se construiu e de que tão expressivamente nos fala Steiner no seu "Uma certa ideia de Europa" , que nos deve preocupar.
De facto, não é possível manter uma peregrinação deste folgo essencialmente espalhada por uma estrada nacional, de trânsito caótico (e cada vez mais intenso em tempos de fuga a portagens), escassas bermas, reduzido apoio sanitário e nula sinalização.
Só uma enorme sorte, ou a proteção de Quem se visita (para os que têm Fé) tem impedido elevados sinistros ou mesmo perda de vidas humanas.
E, no entanto, é absolutamente possível organizar uma alternativa criando uma rede de caminhos, fora da estrada nacional, por dentro dos concelhos, com a devida sinalização e apoio.
Por toda a Europa, e já aqui na vizinha Espanha - nessa magnífica grande estrada de São Tiago - se encontraram soluções seguras para os cidadãos e com retorno muito positivo do ponto de vista ambiental e até económico.
A revitalização comercial, cultural e turística de muitos pequenos lugares por onde tantos podem passar não é mais do que o principal resultado de uma das vertentes mais importantes do fenómeno turístico: o turismo cultural e religioso.
De que estamos portanto à espera para, em conjunto, Estado central, municípios e Igreja pormos de pé os Caminhos de Fátima? Muito mais do que o devido respeito pela integridade física de tantos milhares de portugueses - por si só valor supremo - estaríamos apenas a dar corpo ao que tantas vezes já se inscreveu como prioridade estratégica dos nossos múltiplos PENT (Plano Estratégico Nacional de Turismo).
E seria relativamente fácil: bastava conceber um projeto supramunicipal que agrupasse todos os municípios impactados por esta realidade e cujo objetivo seria criar um contínuo de caminhos devidamente sinalizados, infraestruturados e interpretados que conduzissem todos os que quisessem fazer essa experiência contemporânea da peregrinação.
Os fundos comunitários cofinanciariam com facilidade 85% da despesa e a contrapartida nacional poderia ser financiada pelo conjunto Estado central, municípios e Igreja.
2017 é uma meta óbvia. O Santuário celebra os 100 Anos das Aparições de 1917. Não duvidemos da afluência e dos perigos.
Podemos esperar e ver ou fazer desse ano o início de uma rota com fortes dividendos espirituais e turísticos para os que expõem a sua esperança e a sua Fé e para todos os outros que hoje como antes continuam a fazer "a cartografia da Europa pelos horizontes percecionados dos pés humanos".