Entre um analfabeto tecnológico e um canalha tecnológico, qual deles é mais lastimável - e causa mais danos - a uma sociedade organizada? A resposta final não se enquadra nas tipificadas para um prémio de um milhão de dólares.
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Embora possa ser feliz à sua maneira, um analfabeto em tecnologias não adianta nem atrasa nada o progresso da Humanidade - vive um ramerrame pautado pelos sinais de fumo e à velocidade dos pombos-correios. Já um dotado em métodos não primitivos, mesmo mais e mais avançados dia após dia, em teoria "encurta" o Mundo e pode fazê-lo progredir pelo aprofundar rápido de experiências sob uma condição: uso em doses certas do manancial de liberdade posto à sua disposição pela parafernália de novos equipamentos.
Eis então o ponto essencial capaz de fazer toda a diferença: saber usar ou não a tecnologia. E a ténue linha suscetível de resultar num infeliz e por isso desaconselhado modelo competitivo: o do afundamento de princípios julgados até há poucos anos como inegociáveis.
O uso indiscriminado e maquiavélico contradiz todas as virtudes das tecnologias, incluindo as novas; e a transgressão, sobretudo quando associada a canalhice, revela-se mesmo o elemento mais perigoso e degradante da sociedade. Se em sede de Justiça, pilar fundamental de qualquer Estado que se preze, então nem é bom classificar.
Duas canalhices recentes são paradigmáticas de como o uso da tecnologia deve ser criterioso, sob pena de se transformar num identificador de crápulas.
Primeiro lastimável episódio, ainda que marcado pela paixão subjacente ao futebol: caiu no espaço público a gravação de depoimentos realizados em sede de inquérito no Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol para apurar dolo ou não protagonizado nuns minutinhos de atraso da entrada em campo do F. C. Porto para o jogo com o Marítimo de um dos grupos da Taça da Liga. Como catalogar quem gravou à sorrelfa as conversas ou delas fez uso indevido para obter efeitos de intoxicação na opinião pública? Se não é obra de canalha, é obra de canalhinha....
Um caso de bola poderá ser classificado como uma minudência - mas não esconde o caráter.
Pulhice maior: o famoso caso Nóos agita a Espanha e a infanta Cristina sentou o traseiro no mocho para dar explicações sobre as suspeitas de mau uso de dinheiros públicos em que está envolvida. O juiz decretou a proibição de recolha de imagens ou sons no interior da sala de audiências, mas de nada valeu a sua ordem: uns minutinhos da argumentação da arguida foram, para deleite dos atraídos pelo fruto proibido, parar à edição eletrónica de um jornal - passados ou pagos é de somenos para o caso. Um escândalo! E, para já, o que se sabe da investigação à subversão da ordem judicial? A Polícia espanhola identificou como autor do crime um advogado (pois...), o qual terá usado um método avançado de tecnologia: uma câmara incorporada num simples pin do casaco. Ou seja: a virtude da tecnologia foi usada por (mais) um canalha.
Retirado o afã pedagógico há, evidentemente, uma impossibilidade de controlar até ao infinito este tipo de desmandos. Vale, apesar de tudo, refletir no arquétipo de sociedade global em construção.