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Escrevo enquanto oiço em fundo o primeiro debate presidencial, mas não é sobre ele a crónica de hoje. É Manuel João Vieira que não me sai da cabeça. Gosto dele. Do lugar que soube ocupar com talento e coragem - contra interesses instalados, contra todos os poderes, contra o culto do sucesso e do politicamente correto, contra a hipocrisia. Por isso, com a mesma propriedade, acho a sua candidatura deplorável e até um pouco abjeta. Entre ele e André Ventura vejo todas as diferenças, mas uma semelhança inquietantemente assustadora: os dois desejam descredibilizar a democracia, os dois querem ridicularizar o estado a que chegamos, os dois contribuem, de maneiras diferentes, para matar a pouca credibilidade que resta a um regime que, apesar de tudo, nos ofereceu muitíssimo mais do que aquilo que os meus pais e avós tinham. Os dois estão a fazer a mesma viagem no mesmo barco, tendo um e o outro, admito, objetivos diferentes. Mas aí, para meu próprio espanto, prefiro Ventura a Vieira. Porque o primeiro é detestável, mas os democratas, de Direita e de Esquerda, sabem que o devem combater. Enquanto o segundo é adorável e faz-nos rir, mas a sua ação serve apenas para ajudar a rebentar a democracia, serve para a corromper por dentro. Vieira é a lebre involuntária de Ventura, o palhaço pobre que faz o trabalho sujo para a extrema-direita sem sequer saber que o está a fazer. Há dez anos, podíamos rir-nos e até votar nele. Hoje, votar nele é escolher o vazio e a lama, lugares em que sabemos quem capitaliza.

