Capitalismo de vigilância e liberdade condicional
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Caro concidadão, já cuidou de tratar dos limites que está disposto a consentir para o exercício da sua liberdade pessoal? Já refletiu sobre o universo distópico que o rodeia? Pense bem, dispositivos de vigilância (DV) por todo o lado, a internet dos objetos (IOT), a inteligência artificial (AI), as redes sociais (RS), a realidade aumentada e virtual (RAV), o metaverso (MV), já ponderou sobre qual o trade off que está disposto a aceitar entre liberdade e multirrisco? E já determinou para si qual é o investimento pessoal que está disposto a fazer em matéria de literacia digital e tecnológica para não ser recorrentemente condicionado e ludibriado?
Estas e outras questões vão atravessar-se no nosso caminho de todos os dias e vão, obviamente, formatar a nossa 2ª natureza humana que já está em plena formação. O panótico tecnodigital já aí está e cabe-lhe a si escolher qual é o grau de liberdade condicional que está disposto a aceitar. Senão, vejamos. Com os DV somos suspeitos cada vez mais cedo. Com a IOT debitamos vertiginosamente cada vez mais notificações. Com as diferentes linguagens da IA a nossa mente fica cada vez mais preguiçosa. Com as RS somos influenciados e manipulados cada vez mais. Com a RAV somos atraídos para aventuras cada vez mais arriscadas. Com o MV somos transportados para ambientes simulados e vamos coreografar o campo dos nossos heterónimos avatares. De resto, quando olhamos para os nossos concidadãos com o braço em riste e o smartphone pendurado na ponta da mão ficamos com a desagradável sensação da posição invertida, ou seja, nós pendurados nos braços do smartphone.
Aqui chegados, a realidade que temos perante os nossos olhos inocentes precisa de ser constantemente reinterpretada. Ou seja, doravante, o que parece não é. Com efeito, não só a informação bruta produzida pelas diversas tecnologias da informação e comunicação precisa de ser tratada e normalizada, como a velocidade das transações virtuais muda a nossa perceção do espaço e do tempo, agora que estamos a migrar para o universo do ciberespaço onde a velocidade é uma vertigem e o risco de colisão é cada vez maior. Estaremos cada vez mais próximos de muitos incidentes e acidentes de percurso.
Com efeito, a esta velocidade vertiginosa, o tempo do reflexo é muito diferente do tempo da reflexão, tudo isto por que o tempo humano foi ultrapassado pelo tempo-máquina e o poder foi delegado nas máquinas do tempo. De certo modo, a História transferiu-se da Terra para o Céu (o ciberespaço e a computação em nuvem!!), a aceleração do tempo tornou o mundo plano e emergiram os não-lugares onde a identidade dá lugar à rastreabilidade e à vigilância.
No que diz respeito ao regime de transição, assistimos, agora, a uma transformação estrutural da esfera pública na sociedade digital, ou, como diria, o filósofo Jurgen Habermas, assistimos à emergência de uma outra teoria do agir comunicacional. Neste contexto, a grande questão de sociedade que se impõe é esta: perante a crescente digitalização da sociedade, vamos nós reinventar o grande compromisso da política ou vamos ceder face a uma outra física social, engendrada por máquinas inteligentes e algoritmos, que nos confinam e condicionam por meio da normalização e padronização dos nossos comportamentos?
De facto, os dispositivos tecno digitais que referimos no início aparecem como um equivalente funcional da esfera pública e da vontade geral de outros tempos. Estamos perante uma teoria behaviorista e utilitarista do comportamento humano, que a racionalidade digital normalizou e padronizou por via da informação e dos dados que nós produzimos constantemente e que, além disso, nos conduzirá até à verdade última sem o ruído e o desperdício da racionalidade comunicativa. Em suma, a fileira digital parece ou pretende revelar-se superior à racionalidade do agir comunicacional e à sua fileira de discussão, argumentação e comunicação.
Estamos num momento crucial da vida democráticas das sociedades contemporâneas. Já sabíamos que a nossa racionalidade era limitada, não obstante fomos capazes de encontrar um fundo comum de discussão em que a contextualização, a argumentação e o contraditório fazem parte da nossa racionalidade comunicativa. Esta é a fileira da ação comunicativa e a base da nossa esfera pública democrática tal como a conhecemos no mundo ocidental onde a divisão tripartida dos poderes e as liberdades públicas asseguram, apesar do ruído, o compromisso da política e a política do compromisso. O risco, porém, é a regra do capitalismo da vigilância, pois ele sabe que o bullying tecno digital rende. O espaço público democrático é, cada vez mais, centrifugado pelas plataformas descentralizadas e distribuídas que se revelam incapazes de ação política e cognitiva consequente.
Assim, a bifurcação do universo comunicativo parece inevitável. De um lado, a diversidade representativa e a opinião dos outros, uma racionalidade própria feita de discussão, argumentação e contraditório que enriquece e constrói a democracia política. Do outro, a privatização e a tribalização da internet, a revisão dos factos em nome de uma verdade identitária e corporativa. Aqui deixa de haver debate e discussão, o contexto e os argumentos não contam, a ação comunicativa dissipa-se.
Seja como for, no final do dia é provável que estas duas racionalidades comunicativas passem a coabitar e a interagir na sociedade tecno digital e é nessa interação que vamos atualizar e realizar o compromisso da política porque um somatório de esferas privadas não faz uma esfera pública e as desigualdades sistémicas não foram eliminadas. Em síntese, não podemos prescindir da política e do seu compromisso, embora os utilitaristas do universo tecno digital afirmem que seria muito útil prescindir da política. Se a política é capaz de operar essa conversão benigna, esse é outro problema.
Notas Finais
Em síntese, estamos algures entre o capitalismo de informação e o capitalismo de vigilância. Fica o aviso, não podemos tolerar que a embriaguez informativa mantenha as pessoas na ignorância e que a vertigem da informação crie uma agitação no sistema cognitivo que destrói a perceção da realidade e a ação racional. Seja como for, o cenário de guerra já aí está: trolls, social bots, contas falsas, fake news, desinformação, ódio, tweets, memes, vídeos, fotomontagens, vírus mediáticos.
Felizmente que os dispositivos tecno digitais não eliminam a memória, a contingência e a imaginação, embora também as disputem. Caro concidadão, se quer ir a jogo e não quer viver em liberdade condicional a maior parte do tempo só os limites traçados pelo conhecimento e a literacia, a arte e a cultura, o podem salvar da distopia tecno digital e do capitalismo da vigilância. E não se esqueça, ainda, que a verdade é uma construção social e que isso dá sentido à vida em comum, o seu fundamento existencial. Voltemos, pois, ao essencial: o bem comum, o bom senso, a ética do cuidado, o fundo comum das coisas, a língua comum, a empatia entre os seres humanos.