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Já tinha ficado fã da Virginie Despentes com “Teoria King Kong”. Impactou-me a sua coragem, o seu ímpeto na escrita, a forma desabrida com que fala de temas que historicamente nos habituamos a suavizar (o sexo, a prostituição, a violação, a repressão das mulheres). É um tratado feminista sem merdas.
Longe da sobriedade distante da linguagem académica, a léguas da superficialidade jornalística dos nossos dias, nos antípodas das simplificações toscas de postagens (supostamente corajosas) nas redes sociais, Despentes fala na primeira pessoa, sem individualizar a causa, sem se pôr no lugar da vítima, evitando o registo emocional, mantendo sempre o amplo e político olhar sobre os temas da intimidade, porque afinal a luta é coletiva e interseccional (ou falhará). O seu espírito punk, o arrojo, a atitude impiedosa com que abre todas as caixas de Pandora relembra-nos que andamos todos muito domesticadozinhos, mesmo que ostentemos a ilusão de que somos uns desconstruídos. A seu lado somos todos uns rebeldes daqueles que jogam monopólio quase até à meia-noite.
“Caro idiota” é o seu novo romance. Uma coleção de correspondência eletrónica de três personagens: um escritor de meia-idade, de origem proletária, que é apanhado pelo movimento Me Too, uma diva do cinema na casa dos cinquenta e uma blogger feminista, mais jovem, que é a denunciante do primeiro. A leitura é cativante, não apenas pela enorme inteligência do discurso e pelo ácido sentido de humor, mas sobretudo pela atualidade das temáticas. Fala-se da cultura do cancelamento, da toxicidade das redes sociais, de cyberbullying, de abuso sexual e da sua complexidade, de idadismo e da negação do envelhecimento das mulheres, da representação feminina no cinema, de toxicodependência, de saúde mental, da pandemia e de polarização.
Ao longo do romance epistolar, a narrativa, que parte do conflito e da divergência profunda entre os personagens, vai mostrando que se baixarmos a guarda e nos virmos uns aos outros de perto, as irreconciliáveis diferenças ideológicas dão lugar à humana identificação. Afinal, somos todos falhos, feios e frágeis.
Todos precisamos de ser vistos, todos temos traumas, carências, inseguranças e se a raiva parece ser a primeira resposta, a reação automática, a linguagem do zeitgeist, quando saímos da gritaria das redes sociais, é bem provável que haja espaço para a compaixão.
É raro encontrar literatura tão ancorada no seu tempo e, neste caso, a ligação à terra não se faz apenas nas temáticas, mas define o registo. Trabalhando a partir do formato do email, da mensagem no chat, do post no blogue, da legenda do Instagram, Despentes escreve com os pés bem enterrados na lama dos nossos dias e isso tem tanto de incómodo como de psicanalítico.