Meu caro Miguel (Veiga), desculpa se te escrevo por esta via, e se venho falar de um assunto que gostarias de ver encerrado, mas decerto compreenderás que os teus amigos e admiradores, nos quais me incluo, não possam deixar de sentir que, também eles, foram vítimas de uma sentença que os injustiça e tolhe.
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Dou de barato os argumentos formais do acusador, que seduziram o tribunal. Entendo como natural que quem vive na penumbra se sinta lesado por ver os seus escritos, sempre e injustamente esquecidos, serem abrilhantados subitamente, quando são citados por ti. Tanto trabalho, tanto empenho, sempre condenados a serem olvidados, não é justo. Perguntar-se-á, porventura, porque diabo só atingem o palco da fama quando tu os declamas. E, isso, meu caro Miguel, esse sentimento, faz parte da natureza humana.
Admito que possas ter cometido um erro ou um descuido; que possas não ter sido claro quando o citaste, ao usares na citação a palavra "apud", um conceito difuso do latim que, pelos vistos, não chega para resolver os problemas do ego do autor. Suspeito, contudo, que não fora o caso de mencionares o seu nome, e ele nunca se teria apercebido do sucedido.
Sei que és um escritor compulsivo, arrebatado, intenso. O teu coração também é assim. Conheço-te bem, sei dos teus princípios éticos, lembro-me de muitos dos combates em que participaste, e da forma como sempre defendeste as tuas causas apesar de as saberes, a muitas delas, perdidas. Das poucas vezes em que não estivemos do mesmo lado, barricados em ideias diferentes, fiquei a conhecer-te melhor do que nas muitas vezes em que partilhamos a mesma trincheira. Sei que os teus exageros fazem parte da tua maneira de ser e que são sempre generosos. Perdoo-te a vaidade porque sei do que és capaz, admiro a tua estética, e não me é difícil de entender que suscites a inveja e a cobiça daqueles que o talento e a sorte não bafejaram igualmente.
Pela minha parte, gostaria que soubesses uma coisa. Se um dia destes te lembrares de escrever alguma coisa que seja da minha autoria, não te preocupes com os detalhes técnicos, legais e formais. Para mim, será uma honra imensa se uma ideia, uma frase, ou uma simples palavra minha, tiver o mérito de ser citada por ti. Garanto-te, e prometo-te, que se isso algum dia suceder, te concedo o "habeas corpus", mesmo que te esqueças de me mencionar.
Peço-te, apenas, que não deixes de escrever. Os teus livros e escritos entram em minha casa pela porta grande, e espero que esse gosto que tenho não se veja interrompido por este episódio. Recomendo-te como medida de elementar prudência, que passes a colocar tudo entre aspas ou em itálico, e que juntes no final um CD com a lista telefónica do Porto, assegurando a cada um dos titulares a autoria do que escreves.
Quero que continues a ser o Miguel, o eterno "dandy" do Porto, com a tua singularidade plural. Se fores almoçar ao Club e alguém te olhar de soslaio, com aquele ar de superioridade maledicente e mal pensante que sobra sempre aos medíocres quando os melhores não estão tão bem, olha-os na cara e desarma-os com o teu sorriso.
Como bem sabes, não estás só. Citando-te, e faço-o entre aspas para que ninguém me acuse de te plagiar, "a sorte e o acaso fazem os parentes. Mas é a escolha que faz os amigos. (...) Só que - triste sinal dos nossos tempos - o discurso da amizade é hoje duma extrema solidão porque ignorado, depreciado ou subestimado não só pelo poder mas também pelos seus mecanismos. (...) Muita gente pensa que a amizade é uma herança do passado. Quando, na verdade, a amizade é o essencial, o sal da vida. Quando é a amizade que nos funda e se nos entretece nesse acerto de olhares, nesse consenso de linguagens, nessa comunhão de gostos e contragostos, de repulsas, de preconceitos, de reflexos e, sobretudo, dos afectos. Talvez por isso nunca nos aborrecemos com um amigo".
Nós somos de um tempo que precede os sinais tristes destes nossos tempos de cinzas. Não sintas, por isso, a solidão, não sucumbas à amargura, porque os amigos que ainda tens, e ainda são muitos, nunca te deixarão sozinho.