Em casa com pouco pão quase todos ralham e poucos têm razão. Quando se fala deste Governo, talvez isso explique por que é habitual surgir uma de três espécies: os crentes, os infiéis e os que não são nem uma coisa nem outra. Os que sofrem são os últimos. Porque o infiel sempre os tratará como crentes; e o crente sempre os olhará como infiéis.
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Para os crentes, as decisões do Governo, por absurdas que pareçam, são virtuosas e "corajosas" - ainda que a "coragem" esteja ao nível da daquele indivíduo a quem o medo é uma cena que não assiste. Não interessa o sentido crítico, e é até de evitar em nome do "interesse nacional": porque o primeiro-ministro diz a verdade. O crente age e reage de forma emotiva, acredita (para os outros) num modelo de Homem Novo, resignado, humilde, seco de carnes, resistente à miséria. Age e reage, mas não pensa. Porque isso cansa.
O seu primeiro impulso será invocar o passado. Sócrates é o Anticristo; e o Estado social uma doença venérea das sociedades decadentes. Assim, tudo o que Passos Coelho de errado possa fazer estará antecipada e infinitamente perdoado: Passos é o bem.
O que nos impõem de fora é reconfortante: "eles" sabem melhor do que nós o que nos fará chegar à "salvação". De facto, quanto maiores o enxovalho e o sofrimento, melhor. O povo merece (o povo, mas nunca o crente), porque é por definição primário. Para a gentinha, rédea bem curta: há que educá-la. Imagine-se, o povo agora até acha que pode discordar do Governo e manifestar-se. Pois, a corja costuma ser mal-agradecida e há que pô-la na ordem: porque aguenta, mesmo que muitos tombem exangues pelo caminho.
Os infiéis são uma mistura mais complexa, mas alguns não ficam atrás dos crentes - esticam é a corda para o lado oposto.
O primeiro-ministro abre a boca para bocejar? Cínico. Anda calado? Indigente. Marionete do grande capital, nada é suficientemente mau para o descrever. Terá, aliás, o dom da ubiquidade. Porque tanto é um tonto como, em simultâneo, é dotado de uma inteligência diabólica superior e sonha com uma sociedade de escravos.
O Anticristo, agora, é Vítor Gaspar. Manda em Passos Coelho, mas é um pau mandado dos alemães e outros que tais. O Governo, esse, é composto por incompetentes; na versão intermédia, por desgraçados que não têm onde cair mortos; na versão radical, por traidores. Por isso o 1.0º de dezembro foi generoso para o infiel: lembrou-lhe Miguel de Vasconcelos. Pode até haver uma dimensão mais rica na crença de certos infiéis: Anticristo são dois, Passos e Sócrates, o que vem a dar num debate prototeológico de resultado incerto.
Os crentes, é verdade, vão minguando a olhos vistos.
Por exaustão, primeiro: ninguém aguenta andar sempre de olhos fechados a bater nas esquinas. Além disso, o crente costuma ser muito exigente, mas nada exigente no que a si diz respeito - mesmo que atulhado até às orelhas em mordomias. Para os outros, austeridade e em força, será sempre de menos. Quanto a si, alto lá, não se lhe pode mexer. E, quando se lhe toca, salta ágil para o campo dos infiéis.
E aqueles que querem discutir a sério, que criticam mas entendem que aqui e ali podem aplaudir? Aqueles, afinal, que não têm do debate público de ideias uma visão confessional? São como o lince da Malcata, em vias de extinção. Nesta guerra feroz de trincheiras em que a discussão serena é quase impossível, os crentes estão de um lado e os infiéis do outro. E os outros no meio, a levarem pancada de ambos. Criticam o Governo? São "socratistas", avessos à mudança, parasitas do Estado ou comunistas trogloditas. Elogiam algo que o Governo faça? São neoliberais (como se o Governo tivesse um pingo que fosse de liberal) ou estão à espera de uma qualquer benesse do poder.
O debate público radicalizou-se e arrasta-se numa pobreza franciscana. E isso é perigoso numa democracia. É que, qualquer dia, só há crentes (todos barricados na sala onde reúne o Conselho de Ministros) e infiéis (lá fora). Quando esse dia chegar, não se queixem.