ao arquitecto Duarte Morais Soares
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Quiçá o leitor não saiba - entretido que anda a viver a vida - mas a Câmara Municipal do Porto acaba de anunciar um leilão para a concessão de uso privativo de 99 jazigos no cemitério do Prado do Repouso. Não há nada mais privativo do que a morte e esta é, ao que tudo indica, uma excelente oportunidade de a preparar. Segundo o anúncio electrónico - publicado no Céu - o critério de adjudicação dos 99 jazigos será o da proposta mais elevada. Quem mais oferecer por alguma destas "moradas perpétuas", ganhará o direito de para lá ir viver a "vida eterna". Se pensarmos que, por razões anteriormente aludidas nestas crónicas, muitos dos portugueses sobrevivem já num estado de mortos-vivos, resulta extraordinariamente propício o sentido de oportunidade da Câmara, uma vez que uma fatia cada vez maior do público-alvo - e melhor o dirão os psiquiatras - tem andado a pensar recorrentemente numa mudança.
Os interessados devem, por isso, visitar os 99 jazigos durante o horário de funcionamento do cemitério. Ignoro se a Câmara optou por dar formação ao coveiro como agente imobiliário, ou se terá criado alguma empresa do tipo da Porto Vivo (a "Morto-Vivo"), no sentido de comercializar os jazigos ocultos pela vegetação - "Já Heras" - mas posso sempre adiantar que o sortido leque de acabamentos varia entre o mármore e o granito.
Ora, ao estado a que as coisas chegaram em Portugal não estou a ver, sinceramente, que aliciante pode haver na aquisição de uma "morada perpétua" em solo nacional. Já me parece suficientemente penoso habitar à superfície estando vivo, quanto mais abraçar esta terra para sempre - ou por ela deixar-se abraçar - num exercício de masoquismo "profundo".
Porém, o leilão está aí, e cabe-me a mim escalpelizá-lo: o preço base dos jazigos oscila entre 1931 euros (por um espaço de 9 metros quadrados com capacidade para 12 lugares) e 29 707 euros (por um espaço de 11,7 metros quadrados com capacidade para 14 lugares). Quer isto dizer que existem T12 e T14 para venda. Quem julga, porém, estarmos perante a possibilidade de viver a morte num palacete cheio de quartos, desengane-se desde já porque, apesar de existirem preços para todas as reformas - de 214 euros por metro quadrado até 2539 euros por metro quadrado - estamos fundamentalmente a falar de propriedade vertical: caso o primeiro familiar a instalar-se padeça de asma, por exemplo, fica desde já a saber que terá de vir a suportar, consecutivamente, com o peso de mais 11 ou 13 irmãos, primos, tios ou filhos, em cima da sua insuficiência respiratória. É aflitivo. O que se antevia como uma morte em grande, ampla e arejada, pode muito bem tornar-se, com os anos, asfixiante. Se à partida parecia estarmos perante um bom negócio, isso de levar com a família em cima a morte inteira - em certos casos, depois de ter levado com ela em cima durante toda a vida - é tudo menos fantástico. E sem poder trocar de piso.
Eu não queria estar aqui a prejudicar a Câmara da minha cidade - de que tanto gosto - mas a verdade é que não tenciono ir ao leilão. Ao fim de sete anos de vida subterrânea, a morte iguala-nos a todos e no que me diz respeito, pretendo poupar a Mãe Natureza a sete anos de trabalhos, tomando o atalho da cremação. A restar alguma coisa do corpo, enquanto vasilhame, o que de nós sobrevive não é muito mais do que a alma e a alma, como é sabido, nunca careceu de jazigos porque entre vanitas e viagem, sempre optou pela viagem. Por isso, a venderem-me algo que pertença à minha cidade, fariam melhor em deixar-me adquirir uma nuvem já que, mais do que tumbas de pedra ou jazigos de luxo, agradam-me as clarabóias, as mansardas e as águas-furtadas, e nuvens a parecer almofadas, algodão-doce ou poufes.
E, mesmo que não consigam convencer nenhum pai nem nenhum filho, decerto dará uso aos jazigos o todo-poderoso Espírito Santo que, como toda a gente sabe na gama alta de condomínios, à partida, já é dono de tudo.