Na Catalunha, pergunta-se hoje aos eleitores com mais de 16 anos - onde se incluem também os cidadãos estrangeiros residentes - se querem Espanha, se querem menos Espanha ou se não querem Espanha de todo. É um voto pouco formal, não vinculativo, uma "consulta". Madrid e o Tribunal Constitucional tinham dito, antes, que um referendo em que se decidisse (ou não) pela independência, nem pensar.
Corpo do artigo
Do ponto de vista do direito, a razão assiste-lhes. Mas esta deixou de ser uma questão jurídico-formal, até porque as suas vestes sempre foram as da política. Madrid comete o erro de - arredado o referendo - não ter admitido, minimizando-a, a tal consulta não vinculativa. Optou, antes, por meter a carne toda no assador: novo recurso para o Tribunal Constitucional, nova "vitória", ataque em todas as frentes.
Ao colocar esta consulta agora "promovida" pela sociedade civil como risco grave para a unidade do país, o Governo espanhol pode ter deitado abaixo pontes que depois vai ser difícil reconstituir. Se o combate que leva a cabo é por si apresentado como dramático, vai haver vencedores e vai haver vencidos: tudo aquilo que teria sido importante evitar. E isto numa altura em que o campo pró-independência, mais o campo que é apenas pró-consulta (não são campos idênticos) vão conquistando terreno, por terem sabido explorar o sentimento de indignação daqueles que cada vez mais querem ser perguntados.
O resultado vai depender, em primeiro lugar, do número de votantes. Num universo de mais ou menos seis milhões, muitos haverá que estarão a sonhar com ansiedade os três milhões, número mágico que outros consideram muito difícil ou mesmo impossível de alcançar. Vai depender, depois, da perceção pública dos resultados. E vai depender, finalmente, da forma como Madrid e a Generalitat pegarem, com mais ou menos pinças, na tal "vontade" catalã e aceitarem negociar.
Em todo este processo, houve vários excessos. Foram ditas coisas que feriram e, porque feriram, dividiram. Mas, que tenha presente, o pior, o mais lamentável e detestável episódio veio da Universidade de Girona e da discussão em torno do destino a dar ao doutoramento honoris causa que a mesma Universidade tinha atribuído em 2012 a uma professora espanhola e catalã, Encarnación Roca. A senhora, feliz septuagenária, tem um percurso de vida e profissional notável, sendo aliás a primeira catedrática de direito civil em Espanha, desde 1984. E dá-se o caso de ser também juiz do Tribunal Constitucional espanhol e de haver cometido o pecado capital e portanto imperdoável de ter votado a favor as duas decisões que determinaram a proibição da consulta catalã (houve unanimidade), tanto na vertente de referendo como na outra, mais light, de consulta não vinculativa.
Este comportamento terrível da nossa juíza foi o suficiente para que algumas dezenas de membros do Senado da Universidade de Girona tivessem conseguido convocar uma reunião extraordinária daquele órgão académico, tendo em vista retirar-lhe o grau honorífico.
Devo dizer que, depois de lida a decisão de 4 de novembro, fico convencido de que a Generalitat tem razão quando sustenta que, tratando-se de um modelo de consulta diferente, o TC deveria ter recusado apreciar a queixa do Governo espanhol, uma vez que este tratou no seu recurso a tal consulta não vinculativa como mero referendo sob outro nome. Ou seja, o Tribunal Constitucional não decidiu bem.
Mas aquilo que é uma simples divergência de opinião é isso e não pode ser mais do que isso. Sobretudo, não é pensável que possa castigar-se quem divirja com a aplicação de uma sanção, humilhante além do mais.
Raras vezes terei sabido de iniciativa tão estúpida, em que de forma insensata se convoca para dentro dos muros da Universidade a serpente da intolerância e do delito de opinião. Felizmente, o Senado rejeitou por ampla maioria coisa tão absurda. Mas muito do mal estava já feito. E não deixa de ser sinistro que o primeiro proponente deste absurdo, de seu nome Pau Planas, tenha declarado reconhecer os méritos daquela que escolheu como alvo, assegurando que o seu objetivo não era atacá-la. O que seria se fosse, perguntar-se-á. Ou que outro dos proponentes tenha defendido o castigo identificando Roca como "uma das doze pessoas que impedem um povo de milhões de pessoas de votar".
É um episódio, e isolado. Mas, como em tudo, cautela e caldos de galinha não fazem mal a ninguém.
