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Não é preciso ler tratados de Ciência Política, nem conhecer a fundo os clássicos da Economia, para perceber o elementar: se o país quer debelar a crise, as suas instituições têm de entender-se em torno de uma plataforma mínima. Sob pena de se enterrar ainda mais no lodo, Portugal precisa, mais do que nunca, de definir um caminho. O que naturalmente implica cedências mútuas entre os protagonistas políticos e respeito pela esfera de intervenção de cada um. É aqui que bate o ponto.
O frágil equilíbrio político nascido das últimass legislativas pulverizou os poderes. Privado de maioria absoluta, o Governo não pode, a seu bel-prazer, impor as medidas que desejaria. A Oposição parlamentar, dotada de maior margem de manobra, não esconde a vontade de penetrar em áreas da responsabilidade do Executivo, para lhe curto-circuitar a estratégia. E nem o presidente da República resiste à tentação de invadir a esfera de competências governamentais.
Cavaco Silva manifesta-se não apenas em palavras, mas também em actos. Das primeiras, são exemplo o discurso do 25 de Abril, que até a localização regional de políticas traçou, e a recente alusão ao papel do investimento público na economia. Dos segundos, diz tudo a porta aberta, na próxima segunda-feira, a um conjunto de ex-ministros das Finanças, que de comum têm a discordância em relação à aposta de José Sócrates precisamente nas obras públicas. Se isto não é sulcar terrenos que a Constituição reserva ao Governo...
A atitude do chefe de Estado é tanto mais paradoxal quanto é certo que ele próprio sempre defendeu a necessidade de o país se unir para poder superar as dificuldades, de falar a uma só voz, único meio de assegurar credibilidade externa.
Cavaco Silva dispõe de legitimidade eleitoral; ninguém o nega. Sucede que não lhe foi proporcionada para se instituir como poder paralelo ou sequer como fonte de uma "segunda opinião" sobre os projectos concebidos pela equipa de Sócrates. Parece que não aprendeu as lições do passado, quando como primeiro-ministro até um congresso "do contra" enfrentou, patrocinado pelo então presidente da República, Mário Soares.