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A tempestade mediática em torno das declarações do presidente da República sobre os montantes das suas pensões de reforma é um exemplo bem elucidativo da degradação a que chegou a nossa sociedade. Perante o que, aparentemente, não passou de uma simples gaffe política, consubstanciada num lamento sobre os seus rendimentos pessoais e numa antecipação exageradamente pessimista das dificuldades que iria sentir quando deixasse o cargo de presidente da República, fez-se um autêntico linchamento de carácter da primeira figura do Estado e principal garante do regular funcionamento das instituições democráticas.
Açulados por alguns órgãos de informação e pelas redes sociais, essa espécie de sinédrio permanente das novas divindades triunfantes, hordas de justiceiros surgiram de todos os lados de espada em punho para execrar no pelourinho da ignomínia pública o nefando pecador. E fizeram-no.
Muita boa gente ainda não se apercebeu de que os tempos de crise e de instabilidade económica e social levaram à destruição das tradicionais referências éticas que auto-regulavam vários domínios da nossa vida pública, com especial ênfase para a política e para a Comunicação Social. Agora a regra rainha é o «vale tudo!».
Na política vale tudo, não já para a afirmação e promoção das ideias e propostas próprias, mas sim para aniquilar, a qualquer custo, os adversários. A mentira, o nepotismo e o populismo substituíram com êxito o debate sério sobre os problemas do país. Os resultados eleitorais não dependem já da qualidade intrínseca das ideias e projectos apresentados nem da sua aceitação pelos eleitores mas antes do sucesso das campanhas contra o carácter dos adversários ou simplesmente daqueles que possam constituir um obstáculo no acesso ao poder. O que se passou com José Sócrates é disso um exemplo perfeito que perdurará na história da infâmia em Portugal.
E na Comunicação Social, alguns órgãos de informação perderam todo respeito pela ética informativa, designadamente pela deontologia profissional do jornalismo. Acusam-se pessoas sem provas, cultiva-se o sensacionalismo mais primário, perderam-se o rigor e a objectividade informativos, abusa-se da boa-fé das fontes e dos entrevistados, usam-se métodos ilegais para obter informações, violam-se a privacidade e a intimidade dos cidadãos, publicam-se opiniões anónimas algumas das quais sob a forma de factos incontroversos e condenam-se inocentes na praça pública sem que lhes seja dada qualquer possibilidade de defesa. Enfim, neste panorama não admira que muitos jornalistas se tenham transformado em verdadeiros sicários ao serviço dos diferentes poderes que se confrontam na sociedade. Outrora contratavam-se gangsters para eliminar fisicamente os inimigos; agora recorre-se a jornalistas ou a opinion makers para assassinar o carácter de quem ousa pôr em causa certos interesses.
Muita boa gente ainda não se apercebeu de que estamos a viver um período revolucionário, com permanentes irrupções insurreccionais nos órgãos de informação, nas redes sociais e na blogosfera. E num tal ambiente toda a justiça se reduz a vingança e todas as vinganças viram actos de justiça.
Talvez o presidente da República não tenha ainda compreendido que os seus verdadeiros inimigos estão na direita e que na esquerda estão apenas os seus adversários - e, sobretudo, que os seus piores inimigos estão dentro do seu próprio partido.
Nunca votei em Cavaco Silva, mas fico tranquilo por ter um presidente da República que recusou o seu vencimento institucional para manter os rendimentos que possuía devido aos seus méritos profissionais, pois ninguém deve ser economicamente prejudicado nem beneficiado em virtude dos cargos políticos que exerce.
Mas, sobretudo fico satisfeito pelas putativas dificuldades económicas que ele alega. Não que as dificuldades dos outros me confortem mas porque estas evidenciam que ele não usou o enorme poder que deteve no passado em benefício pessoal. Num país onde muitos políticos acumularam fortunas pessoais, Cavaco Silva não o fez. E isso dá-lhe um crédito de seriedade que é cada vez mais raro na nossa vida política. Também por isso o respeito como presidente da República.