Pensava não ser cavaquista. Tão-somente porque nunca apoiei ninguém no pressuposto do que este tipo de qualificativo significa. A isso foi sempre alheia a minha independência rebelde. Também, tendo lidado com Cavaco Silva durante muitos anos nas mais diversas condições, como presidente do PSD Porto uma década, como membro de um dos seus governos durante quatro anos, como líder da Oposição e agora como Conselheiro de Estado, tive com ele múltiplos e alargados momentos, muitas horas de trabalho conjunto, mas nunca tivemos uma grande intimidade pessoal. Por honestidade intelectual devo também clarificar que, por lógica temperamental identitária, não sou um apreciador radical da idiossincrasia quotidiana do cidadão agora presidente da República. Leia-se do "feitio".
Corpo do artigo
Aliás, procurando evidenciar permanentemente, sempre em meu desfavor, estas diferenças, humanas e naturais, houve quem quisesse sempre enfocar o que seriam - e não o são, nem nunca foram - as nossas más relações pessoais. Falo de uma opinião publicada que me foi, é, estruturalmente hostil, factualidade que há muito compreendi e aceito com todo o fair play.
Concretizada esta "declaração de interesses", deixem-me dizer o que penso de Aníbal Cavaco Silva.
Da mesma forma que Mário Soares não terá rival quando se entronizar o "pai" da transição democrática pós 1974, Cavaco Silva é a grande figura da construção do Portugal moderno e um guardião da preciosa estabilidade política de que o país não pode prescindir.
Foi com Cavaco que pela primeira vez Portugal teve dez anos de governação tranquila, baseada em duas maiorias absolutas. Foi com ele que se modernizou infraestruturalmente o país. Foi ainda com ele que avançaram as alterações constitucionais que permitiram liberalizar a economia, trazer a iniciativa privada para a construção de uma Comunicação Social livre e plural.
Foi com ele que Portugal teve o primeiro Governo "dream team", onde a competência e criatividade de ministros como Cadilhe, Leonor Beleza, Silva Peneda, Fernando Nogueira, Marques Mendes, Ferreira do Amaral, entre muitos outros, nos fazem suspirar de nostalgia, quando olhamos para o cinzentismo medíocre que se vem instalando progressivamente nos partidos e no Estado.
É verdade que no final desse ciclo, Cavaco Silva era já um homem derrotado pela roda dentada infernal e autofágica da vida partidária, mas deixou um Portugal, mesmo que no meio de uma fase depressiva, com indicadores de desenvolvimento económico e social de primeiro Mundo.
Foi esse impulso que nos permitiu uma integração harmoniosa na então auspiciosa União Europeia de Miterrand, Kohl, Delors e do pré-anunciado euro. Agora, presidente, Cavaco Silva tem vindo a conviver com os piores indicadores de popularidade alguma vez experimentados por um titular de tão alto cargo.
Circunstancialidade injusta que se reverterá com o tempo.
Os que têm empurrado o povo para tal juízo quereriam que o presidente tivesse feito mais "do mesmo", ou seja instabilidade, imitando assim alguns dos seus antecessores.
Para ser popular, o presidente já deveria ter dissolvido o Parlamento e convocado eleições, em paralelo devia incendiar a comunidade com discursos críticos inflamados ao mesmo tempo que vetasse a granel diplomas legislativos. Podia tê-lo feito, até porque é o que têm feito quase todos os presidentes em segundo mandato. Reinaria então nas sondagens, mas já teria entregado o país à ruína perene e à troika permanente.
Uma governação que nos desagrada pode ser, no momento próprio, substituída. A aventura do caos leviano só conduz ao desastre.
Entre outras coisas, uma dissolução precipitada teria conduzido a um confronto Passos/Seguro. Seria isso que deseja a maioria dos portugueses, ou até a maioria dos socialistas? Duvido, penso que duvidamos quase todos...
A justiça do seu exercício sensato ser-lhe-á pois feita porque, no profundo do seu íntimo, os portugueses são globalmente lúcidos e justos e sabem que a alternância, quando chegar, se deve concretizar nas condições apropriados.
Estou a escrever este texto a 10 de Junho, Dia de Portugal. Movido por uma motivação, a imagem com que fiquei da cerimónia oficial da Guarda.
De um lado a falta de respeito e educação de uma minoria que confunde liberdade com arruaça indigna, do outro a dignidade de um homem com uma grande noção das suas enormes responsabilidades e com uma verdadeira dimensão de Estado.
O Cavaco que desfaleceu é o homem que existe em cada um de nós, que não é imune à fragilidade da sua humanidade. Nenhum homem público, por mais relevante que seja o cargo que ocupa, foge a esta inevitabilidade.
O presidente que voltou ao palanque e terminou com determinação o seu discurso, é um dos poucos estadistas europeus desta geração, um homem público sério e bem-intencionado.
Tenho a certeza que a sua atitude estoica de anteontem foi apreciada e orgulhou milhões de portugueses, mesmo muitos que não o apoiam ou votaram nele.
Terça-feira dei subitamente comigo a refletir e a ponderar. No Mundo e na vida as opções equilibradas fazem-se sempre na base da relatividade comparativa. O juízo absoluto é um exercício de fundamentalismo radical, romântico mas irracional.
Assim, um dia destes vou dar comigo a contraditar a observação inicial desta crónica e a afirmar-me cavaquista. Relutante? Talvez, mas ainda assim cavaquista convicto.
Tudo porque devemos ser justos, gratos e orgulhosos dos que sabem ser os melhores de entre nós.