Corpo do artigo
Agora que se discute a transferência de atribuições e competências para as comissões de coordenação e desenvolvimento regional (CCDR), as comunidades intermunicipais (CIM) e as câmaras municipais (CM), volto ao tema da regionalização e da política regional, numa década de grandes transições e num contexto onde tudo está em mudança, desde logo, o novo estatuto orgânico das CCDR que passam a instituto público e os membros da sua presidência, um presidente e quatro vice-presidentes, à condição de gestores públicos, o que pode implicar a sua exoneração eventual em certas circunstâncias. Mas não é sobre a juridificação administrativa das CCDR que quero falar. Quero, antes, pronunciar-me sobre o regime de coordenação e desenvolvimento das CCDR à luz de todos estes novos poderes e dos contributos que as regiões assim constituídas podem e devem dar para o desenvolvimento regional.
O novo estatuto das CCDR implica, desde logo, revisitar o seu regime de coordenação e desenvolvimento, num registo que eu aqui designo por regionalização funcionalista. Neste registo os Programas Operacionais Regionais do nível NUTS II parecem-me uma plataforma adequada e suficiente para fazer a arbitragem regional entre níveis de governo e administração e aprofundar as várias funcionalidades da regionalização administrativa em curso, assim como as missões de cooperação e articulação político-territorial que se impõem.
Existe, porém, um risco sempre presente. Um instituto público sem a direção do governo, mas sob a sua tutela e superintendência e a possibilidade de demissão dos respetivos gestores públicos, corre sempre o risco de ser usado como instrumento indireto de ação política, uma espécie de guarda avançada das políticas de regulação, racionalização e ajustamento financeiro dado o elevado volume de dívida pública existente e as novas restrições europeias agora em fase de proposta. Existe, também, o risco de a administração local usar as associações de municípios e, agora, as comunidades intermunicipais como guardas avançados de projeção da sua legitimidade e especificidade local, intermunicipal e sub-regional.
Se este risco se confirmar, poderemos assistir a uma verdadeira cacofonia territorial, onde uniões de freguesias, associação nacional de freguesias, municípios, comunidades intermunicipais, associação nacional de municípios e administração regional, irão esgrimir argumentos cruzados em nome dos únicos atores verdadeiramente legitimados, os municípios e o governo central. No sentido de pôr alguma ordem nesta cacofonia territorial e tirar partido da nova autonomia concedida, uma hipótese possível é aquela que aqui proponho.
Um novo regime de coordenação e desenvolvimento regional das CCDR
A regionalização funcionalista em curso não me parece suficiente para lidar com os grandes desafios e transições desta década. O desenvolvimento regional precisa de quem promova proactivamente a liberdade criativa da inteligência coletiva territorial, isto é, a criatividade da sociedade política local e regional em todas as suas dimensões e para lá dos arranjos orgânicos e corporativos dos interesses já instalados que giram em torno de várias correias de transmissão políticas e do lobbying institucionalizado. Na sua condição de instituto público e com a autonomia que a sustenta, as CCDR devem procurar conceber um sistema operativo e um modus operandi que seja não apenas funcionalista, mas, também, mais inteligente, justo e criativo. Senão vejamos:
- O país constituiu 23 comunidades intermunicipais (CIM), a maioria coincidente com as NUTS III (sub-regiões das NUTS II); trata-se de um nível de planeamento e implementação de políticas muito relevante para estimular o desenvolvimento do interior; além disso, o país tem em cada capital de distrito um instituto politécnico ou uma universidade cujas áreas de influência e ação integram as CIM, as NUTS III e os Grupos de Ação Local do Programa de Desenvolvimento Rural;
- No mesmo âmbito territorial, o país tem associações empresariais, áreas industriais e grupos empresariais que precisam urgentemente de se reagruparem e recapitalizarem e provarem que não são meros simulacros empresariais, mas verdadeiros projetos empresariais para a década 2030;
- A triangulação entre estas três entidades - as comunidades intermunicipais, os institutos politécnicos e universidades e as associações empresariais - pode e deve estar na origem de um contrato de desenvolvimento entre a CCDR e as CIM para o período 2023-2030;
- O contrato assim assinado seria implementado por uma estrutura de missão criada para o efeito e com competências executivas no território da CIM/NUTS III; no mesmo contrato os três promotores seriam, ainda, convidados à apresentação de uma proposta de reforma da administração pública intermunicipal que considere novos bens comuns e de proximidade, novos formatos de inteligência coletiva territorial capazes de levar a bom
termo projetos de desenvolvimento integrado e, mesmo, a possibilidade de formação de uma autarquia de 2º grau;
- No âmbito desta filosofia contratual e atendendo ao universo de microempresas do nosso tecido empresarial, as CCDR seriam, ainda, convidadas a apresentar propostas de criação de uma agência financeira ou sociedade de desenvolvimento regional tendo em vista tirar o máximo partido dos instrumentos e medidas de estímulo ao investimento, uma via verde para a cooperação, recapitalização e extensão empresariais na região.
Nota Final
De um ponto de vista mais analítico, o despovoamento e a desertificação do interior, ao acontecerem num país tão pequeno, é a prova provada de que o nosso modelo de desenvolvimento territorial está errado há muito tempo. As causas são variadas e devem-se a uma sociedade política dual com excesso de centralismo e localismo, mas, também, a opções erradas de política agroflorestal, desvalorização de serviços públicos fundamentais, ausência de um federalismo intermunicipal efetivo, uma política fiscal e financeira muito tímida para o interior, uma política de ambiente que nunca entendeu a função dos serviços ambientais como instrumento de desenvolvimento e, enfim, um regime de coordenação e desenvolvimento das CCDR que abdicou das tarefas nobres de planeamento e desenvolvimento para se entregar às tarefas de rotina burocrática de acompanhamento e validação de candidaturas e projetos.
No final, todavia, é preciso estarmos avisados para não cairmos num equívoco. As estratégias, programas e planos, não visam, muitas vezes, criar coerência e propósito nas intervenções territoriais, mas, antes, um caldo morno de cultura de remediação onde o minifúndio institucional e o lobbying institucionalizado vão buscar conforto e acomodação. Agora, com o novo regime de autonomia, coordenação e desenvolvimento das CCDR, instituto público, espero que algumas palavras de ordem como modernização, coesão, sustentabilidade e resiliência não sejam mera publicidade enganosa e sirvam, mesmo, para subir na cadeia de valor da programação e do planeamento e estimular a liberdade criativa da sociedade política local e regional e a sua inteligência coletiva territorial muito para lá da mera regionalização funcionalista das atuais CCDR.
*Professor Catedrático da Universidade do Algarve