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Uma semana depois da desastrosa eleição de Donald Trump, a campanha eleitoral prossegue nos Estados Unidos da América. Faltam ainda dois meses para instalar o novo inquilino da Casa Branca. Enquanto nas ruas se multiplicam as manifestações dos descontentes, o presidente eleito repete as promessas feitas! Alertava aqui, na semana passada, para a circunstância perversa que libertou o Partido Republicano das amarras dos "checks and balances" concebidos pelos pais fundadores do constitucionalismo americano, nos finais do século XVIII, para prevenir a tirania e travar as tentações de prepotência e arbitrariedade dos titulares do poder federal. De facto, com a eleição de Donald Trump, os republicanos não garantiram apenas o controlo do Governo. Conservaram também a maioria nas duas câmaras legislativas e, aproveitando a vaga por preencher no Supremo Tribunal Federal, estarão à vontade para nomear um juiz da sua inteira confiança que pode inverter, a seu favor, a maioria tangencial requerida para a aprovação das suas sentenças.
Neste contexto de perigosa erosão do princípio constitucional da separação dos poderes, são muito preocupantes as declarações que o presidente eleito veio fazer esta semana, dando já como certa a cumplicidade do futuro poder judicial com o programa de governo, proferidas num registo displicente que denuncia o seu flagrante desprezo pela independência judicial.
Do velho princípio da separação dos poderes, resta apenas a separação vertical entre o poder federal e os estados federados, justamente aquilo que justifica a eleição presidencial por um colégio de eleitores onde Donald Trump, apesar de ter recolhido menos votos que a sua adversária, assegurou o maior número de delegados o que lhe confere inequívoca legitimidade democrática.
O voto é secreto. As motivações dos eleitores são as mais diversas e assunto que apenas diz respeito à consciência de cada um deles mas é desse somatório de razões múltiplas e de intenções distintas que se constrói a verdade objetiva da vontade democrática. Por isso não faz sentido censurar os eleitores pelas escolhas que fizeram. O que importa é avaliar as alternativas que lhes foram propostas. E pelo acolhimento que Donald Trump obteve na Europa, também nós temos sérios motivos de profunda inquietação quando vemos entre os seus mais entusiastas adeptos, políticos ascendentes como Beppe Grillo, na Itália, Geert Wilders, na Holanda, Marine Le Pen, na França ou Nigel Farage, na Grã-Bretanha: racistas, xenófobos, antieuropeus, ferozes opositores ao acolhimento de imigrantes e refugiados.
É difícil reconhecer esta Europa triste e abúlica que adotamos em 1985 como uma segunda pátria, por acreditarmos no projeto solidário, plural e democrático que ela ainda representa. Essa Europa que nos levou a eleger Mário Soares para a Presidência da República, contra o "vencedor" das eleições legislativas de outubro de 1985 - um Cavaco Silva eurocético por conveniência que, não tendo convencido a maioria dos eleitores, todavia alcançou o primeiro lugar do "ranking" eleitoral à custa dos medos e das incertezas que semeou entre os eleitores contra os "perigos" da integração europeia.
É difícil de entender esta Europa que tolera regimes autoritários e xenófobos na Hungria e na Polónia e assina acordos de governo com as forças políticas mais retrógradas, em alguns dos seus estados- membros.
É difícil de entender esta Europa que precisou da voz da chanceler alemã Angela Merkel para dizer a Donald Trump o que ele merecia ouvir: que a amizade forjada com os EUA sobre as ruínas da II Guerra Mundial se funda nos valores da paz, da liberdade, do pluralismo, da recusa de todas as formas de discriminação e que apenas por estes valores subsiste.
Não se entende por isso a denúncia recorrente dos "populismos de Esquerda ou de Direita", salvo para construir uma falsa simetria que garanta a eternidade das virtudes do Centro, apague alternativas de governo, oportunidades de confronto e livre escolha que são, afinal, a própria essência da democracia. É tempo de acabar o luto da "terceira via". Do que a Europa precisa é de mais Esquerda!
*DEPUTADO E PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL