André Ventura sai da audiência em Belém e explica aos jornalistas as queixinhas que apresentou sobre o líder da Assembleia da República. Sublinha que "Deus é testemunha" de quanto declarou a Marcelo Rebelo de Sousa, admite que o teto lhe "caia em cima" se estiver a mentir nalgum detalhe e remata com a convicção de que o presidente da República saberá pôr na linha a segunda figura do Estado.
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Poderá ser tentador olhar para os exageros e rábulas do líder do Chega como se fossem exercícios humorísticos a que não convém dar muita importância. Aliás, na última legislatura essa foi precisamente a tese dominante: Ventura não passava de um, apenas um deputado, e ignorar seria o atalho mais curto para lhe esvaziar a margem de progressão. Só que um converteu-se em 12, ancorados na narrativa insistente de terem sido escolhidos por 7,18% dos votantes.
Sendo cada vez mais elevado o nível de decibéis e a capacidade performativa do Chega no Parlamento, Augusto Santos Silva tem optado por limitar a todo o momento intervenções ofensivas ou iniciativas às quais possa opor argumentos regimentais, cercando e expondo de forma clara os passos anticonstitucionais do partido. Continua, ainda assim, a haver quem defenda que esse combate dá pretextos para vitimização e excesso de protagonismo. E que por isso o melhor será evitar a palavra, como fez Marcelo Rebelo de Sousa ao não comentar a audiência (seguindo a tradição protocolar deste género de encontros), desviando o tema para o que realmente preocupa os portugueses.
Há, contudo, um risco na tentativa de ignorar o que já tem demasiada dimensão para ser ignorado. É que a estratégia do silêncio apenas seria viável se houvesse um cordão sanitário absoluto em torno do Chega. A sua dimensão no Parlamento e as obrigações institucionais levam, pelo contrário, a que Ventura tenha voz e tente colá-la a figuras respeitadas pelos portugueses, como aconteceu na Presidência da República.
Temos visto os discursos de ódio a germinar na Europa, e atingem dimensões inimagináveis, como comprovam as recentes declarações do primeiro-ministro húngaro sobre raças mistas. É perigoso politicamente deixar André Ventura falar à vontade, como é incompreensível eticamente que o nome de Deus seja tão usado na boca da extrema-direita sem que sobre isso se oiçam posições e demarcações da Igreja. O silêncio deixa de ser opção quando os fantasmas se agigantam.
*Diretora