Quanto mais fundo descemos, mais distante se torna o fundo. O caso do bebé sem rosto, e do médico deposto que lhe deu origem, é um filme de terror em permanente revisitação.
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Falhou tudo o que era possível falhar, ainda que tivesse falhado muita coisa possível de prever. Durante 20 anos - sim, 20 anos - ninguém viu nada de anormal nas práticas esdrúxulas daquele obstetra. Nem o Conselho Regional do Sul da Ordem, nem a Ordem, nem a Entidade Reguladora da Saúde, nem a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde. Nem o Ministério Público. Por variadas e nem sempre compreensíveis razões, o sistema de vigilância e punição de atos médicos pactuou, de forma direta e indireta, com as rotinas aparentemente negligentes (e ilegais) de uma clínica e de um profissional de saúde que é suspeito de ter deixado um rasto irrecuperável de tragédias pessoais. Mães grávidas destroçadas. Um bebé (hoje um jovem com 21 anos) nascido com espinha bífida, uma menina cujas pernas ao contrário passaram despercebidas na ecografia, bebés que morreram no parto, uma outra criança que nasceu com dois órgãos genitais.
Mas de nada nos serve o chorrilho de inquéritos nem os honrosos pedidos de desculpa ao país do bastonário da Ordem dos Médicos se não mudarmos a forma como a classe se comporta. De como procede às investigações internas e de como se serve, tantas vezes, da intrincada malha legal que a blinda para se acantonar entre muros corporativistas.
Podemos indignar-nos com as monstruosidades associadas ao currículo do "doutor cinco minutos" (assim conhecido por ser o tempo que dedicava às consultas), mas se os estatutos médicos não forem alterados no sentido de capacitar as instâncias disciplinares de mais meios e de mais músculo, conferindo-lhes autoridade para suspender um médico quando haja queixas ou suspeitas fundadas de má conduta, então o mais provável é continuarmos a chorar, nos próximos anos, sobre outros bebés sem rosto. Esta responsabilização interessa a todos. Mas interessa, sobretudo, aos médicos. Que sejam eles, por isso, a promover este debate. Não há pior punição para as vítimas do que perceber que o seu sofrimento não serviu para nada.