Quem morre agora vai num espanto de solidão. Junta-nos tristes e a medo em funerais bizarros onde recusámos abraços e cobrimos as bocas mascaradas de nenhuma expressão.
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Sucumbiu ao cancro a Luísa Moreira, 45 anos, figura do ativismo político, coerente, inteligente, em profundo conflito com a vocação do Mundo para excluir ou explorar alguém. Vinha dos meus tempos de escola mas falámos pela primeira vez há quase trinta anos quando, com o Luís Silva, distribuía algum desdobrável, julgo que pela dignificação dos artistas de artes performáticas. A Luísa e o Luís eram unos, uma espécie de mesma pessoa duas vezes.
Quando nos aproximámos, diferíamos sobretudo na definição das convicções. Eu fui sempre mais emotivo, menos rigoroso com minhas próprias decisões, e ela mais intransigente, dando-lhe ternuras apenas depois, regressando sempre ao diálogo com brio, coragem e sinceridade.
Uma tarde, nadámos nus na piscina do belíssimo hotel das Caldas da Felgueira, quando encontrávamos a tia Olinda. A tia Olinda no hotel, nós mais amontoados numa casa barata. De todo o modo, igualmente gloriosos num dos lugares favoritos da Luísa. Nadámos nus porque ela considerou que nos predavam o corpo com ideias de padrões insuportáveis, proibindo a própria natureza de ser como é. Era a querida Joana Almeida que dizia: a Luísa só acredita que existe se for livre. Quem lhe deitava a mão e a prendia ficava fora da sua realidade. Eram-lhe absurdos os preconceitos e o ataque à autoestima de alguém.
Conheci quase ninguém tão fiel a si mesma quanto a Luísa Moreira. A sua função era prática, sem grande rodeio nem métodos decorativos. Convidava para jantarmos em sua casa e ouvirmos o João Lóio e muita música brasileira. Era importante alertar consciências, pelo que nenhum robalo se cozinhou sem que se honrasse com a madura discussão do futuro do país. Era para cuidarmos do país que nos acudia a inteligência. Dignas são as pessoas cujo compromisso é assumido, empenhado, ininterrupto.
A Luísa despediu-se de um cargo público porque considerou pagarem-lhe um salário quando não havia orçamento para programar. Por admirável honra, demitiu-se. Não quis sentir que o Estado sustentava um emprego ao qual correspondia nenhum trabalho.
Suspirávamos pelas terras da Bahia. Um dia, dizia, haveríamos de ir todos viver para um canto da Bahia onde ela levantara uma pequena casa. Ali, amava as pessoas. Quando nos convidava para lá, convidava para a mesma maravilha: que nos amássemos uns aos outros. E o Luís também haveria de ir. Se o Luís estivesse, ela sentia-se completa. E não teríamos medo dos jacarés, porque eles desciam ao entardecer para chegar às águas.
*Escritor