Provavelmente, este é o último ano em que a celebração de duas datas decisivas na construção do Portugal contemporâneo merecerá as honras de feriado nacional. Contudo, o Cinco de Outubro de 1910 e o Primeiro de Dezembro de 1640 são incontornáveis marcos históricos e referências matriciais da identidade nacional. Ao longo dos 270 anos que separam as duas efemérides, Portugal recuperou a sua independência, pondo termo à união dinástica com Espanha, transformou--se depois num estado moderno com a constitucionalização da monarquia, ao preço de uma longa guerra civil e, já no princípio do século XX, instaurou a república na esperança de se resgatar da persistente decadência que corroía a nação. Não parece sensato que com pretextos meramente economicistas se trate tão levianamente uma memória coletiva que, perante as graves dificuldades que atualmente enfrentamos, pareceria mais oportuno do que nunca, "a todo o custo", preservar.
Corpo do artigo
Não foi esse porém o entendimento do Primeiro-Ministro que preferiu ausentar-se nesta data para participar numa "Cimeira dos Amigos da Coesão" em Bratislava, capital da longínqua Eslováquia. Como o tema da "coesão" tem sido tão pouco cuidado quer no interior das fronteiras quer na política europeia, é uma opção governativa que poderá ser entendida, porventura, como um sinal de contrição... Não obstante, precocemente abalada pelo rebentar da Segunda Guerra Mundial e pouco depois arrastada pela maré ascendente dos fascismos na Europa, foi a nossa efémera Primeira República que nos legou a bandeira, o hino nacional e o "escudo", que iria perdurar até ao fim do milénio, data em que foi substituído pelo "euro", fonte das nossas presentes amarguras. O reconhecimento internacional da jovem República Portuguesa iria chegar do Brasil, da Argentina e, mais tarde, dos Estados Unidos da América. Na Europa, dominada por monarquias conservadoras, a República Francesa seria a primeira a reconhecer o novo regime. Com a República, estabeleceu-se a separação entre o Estado e a Igreja, foi autorizado o divórcio, instituído o casamento civil e foram extintos os títulos de nobreza. O direito à greve, o dia de descanso semanal, a jornada de 8 horas e as 48 horas de trabalho por semana foram impostos por lei. O ensino primário tornou-se obrigatório e gratuito, foi instituído o ensino infantil - dos quatro aos sete anos - foi lançada a educação de adultos, iniciou-se a formação de professores, novas escolas foram construídas e à Universidade de Coimbra foram acrescentadas a Universidade de Lisboa e a Universidade do Porto.
A democracia parlamentar instaurada pela revolução republicana de cinco de Outubro de 1910 enfrentou condições extraordinariamente adversas: o envolvimento militar na guerra mundial, em múltiplas frentes, a gravíssima crise económica e financeira, uma tradição de violência que se tornara endémica na política portuguesa e que impediria, por fim, a consolidação de uma autêntica cidadania democrática. Nesses quinze breves anos, os portugueses conheceram nada menos que quarenta e cinco governos, oito Presidentes da República e participaram em oito eleições gerais - uma instabilidade política e administrativa sem paralelo em qualquer outro regime parlamentar da Europa Ocidental, como refere o historiador americano Douglas Wheeler (Análise Social, Instituto de Ciências Sociais, Lisboa - 1978). Em tais circunstâncias, foi espantoso o trabalho realizado e é fácil concluir que se ficou a dever, acima de tudo, à generosidade dos ideais e à força das convicções que inspiraram muitos milhares de republicanos. Mas não foi suficiente. Iriam seguir-se quarenta e oito anos de trevas que quase tudo apagaram e que nem sequer a "Grande Depressão" de 1929/32 iria perturbar. Bem pelo contrário, uma vez restabelecida a "ordem" e entronizado o novo ditador, as finanças públicas equilibraram-se enquanto a liberdade, o progresso e a justiça iam sucumbindo no arcaísmo rústico e patriarcal do Estado Novo. Porque não basta a força das ideias quaisquer que elas sejam. Sobretudo, hoje, quando a ofensiva ideológica se colocou do outro lado da trincheira.