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Por vezes, julgo que o notório enfraquecimento da relevância da Igreja Católica em Portugal se deve bastante mais aos constantes desacertos dos seus principais protagonistas do que à tão apregoada maré de materialismo que terá invadido a sociedade contemporânea - D. Manuel Clemente será a excepção que confirma a triste regra.
Na verdade, quando observamos os dizeres de alguns dos responsáveis da Igreja dá a impressão de que fizeram um arrebatado voto de pobreza intelectual e que o tencionam resguardar até à exaustão.
Vem isto a propósito das recentes declarações do bispo auxiliar de Lisboa, D. Carlos Azevedo. Após denunciar a pobreza e as desigualdades sociais, alvitrou uma proposta: os políticos cristãos deveriam renunciar a 20 por cento do seu salário, quantia que seria destinada a um fundo criado junto da Cáritas. Não é o pagamento do dízimo dos tempos de Abraão, depois consagrado na Lei de Moisés, abolido pelas igrejas luteranas e revogado por Bento XVI no Catecismo da Igreja Católica de 2005 - trata-se precisamente do dobro!
O apelo de D. Carlos Azevedo conseguiu ultrapassar os limites dos pastores das seitas neopentecostais que, com alguma insuspeitada parcimónia, pelos vistos, apenas solicitam a décima parte dos rendimentos dos seus fiéis.
Nem interessa tentar perceber quem seriam, afinal de contas, os ditosos "políticos cristãos" obsequiados por esse pio dever. Para já, talvez seja mais útil conhecer que o seu salário, após a subtracção dos impostos e taxas legalmente devidas e do cumprimento desse dízimo duplicado, ficaria reduzido em cerca de 65 por cento do seu valor bruto - restariam cerca de 35 por cento. Para alguém que tenha de sustentar uma família, é capaz de ser mais justo pedir-lhe para deixar de trabalhar e, quem sabe, viver à custa do Estado… ou da Igreja!
Depois, julgo que as preocupações de D. Carlos Azevedo revelam uma atenção menos virada para os pobres e mais para as necessidades da organização de que é dirigente.
Sejamos claros: desde 2005, os benefícios fiscais das igrejas em Portugal (IVA e IRS) aumentaram quase 70%, tendo totalizado 90 milhões de euros no final de 2008. Ainda não se conhecem as últimas contas, contudo, presume-se que os benefícios terão aumentado já que, após a entrada em vigor da Lei nº 91/2009, de 31 de Agosto, as igrejas passaram a poder cumular a solicitação da restituição do IVA com a possibilidade de ficarem com donativos de contribuintes particulares, desde que devidamente assinalados no IRS (o regime anterior obrigava à alternativa entre um benefício e o outro).
Como se vê, a Igreja tem à sua disposição uma generosa plêiade de vantagens fiscais que a privilegiam. A tudo isto acrescem donativos financeiros numa média superior a mil milhões de euros por ano do Orçamento do Estado a título de transferências financeiras (acordos de cooperação) com o fito de a auxiliar na sua missão social.
Mesmo que se entenda que a Igreja executa melhor as tarefas sociais do que os poderes públicos (e eu assim o creio), no contexto do quadro apresentado, parece no mínimo exagerado dizer-se que o Estado não a apoia de modo razoável.
Assim, as declarações de D. Carlos Azevedo só se conseguem emoldurar numa reivindicação comum a todos os grupos de interesse deste país: pedinchar mais dinheiro ao Estado. Daí o recurso a um discurso populista, feito de raciocínios simplistas mas aparentemente atraentes para quem já prescindiu da vontade de pensar nas mensagens que os chavões carregam.
Retorquindo (conscientemente) no mesmo plano intelectual do bispo auxiliar de Lisboa, seria bom que a Igreja desse o exemplo e renunciasse a 20 por cento das suas vantagens fiscais e dotações públicas, e poupasse o mesmo no esplendor das suas novas catedrais. Talvez dessa forma, Estado e Igreja, em conjunto, pudessem acabar com a imagem que os assemelha enquanto organizações que mais parecem interessadas em manter os pobres (os verdadeiros, não os de espírito) como clientes crónicos e pretextos para esbulhar dinheiro a quem, a custo, ainda consegue manter a cabeça à tona da água, do que em ajudar a extinguir a sua desgraçada situação.