<p>A interpretação, de tão unânime, parece convincente. Diz-se que a Administração norte-americana decidiu intervir nas duas maiores empresas de crédito imobiliário do país para evitar males maiores, que até à nossa porta poderiam bater. Que se antecipou à previsível falência da Fannie Mae e da Freddie Mac para poupar o sistema financeiro - mundial - a uma turbulência ainda mais profunda, susceptível de abalar os seus pilares. </p>
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Como não sou especialista em questões económicas, sinto-me inibido de discutir a bondade da medida. Admito até que seja acertadíssima, mas não sou capaz de fugir a uma perplexidade: se Bush acciona a arma da nacionalização, para preparar a maior operação de resgate financeiro da história do país, então o mundo anda de pernas para o ar. Nem no terreno económico sobrevive um pingo de coerência ideológica.
Suspeito, apenas suspeito, que a situação chegou onde chegou porque as autoridades de supervisão dos Estados Unidos foram incompetentes, quanto mais não seja por omissão. Talvez tenham acreditado que o mercado, mal ou bem, tudo resolveria, até serem confrontadas com a inevitabilidade de recorrer à "bomba atómica". Pelas asneiras de regulação e os pecados do mercado, hão-de pagar agora os contribuintes norte-americanos qualquer coisa como 211 mil milhões de euros, segundo as estimativas - quase mais 50 mil milhões do que o Produto Interno Bruto português. E pagaremos todos nós, que penamos numa crise sem fim à vista.
Problemas de coerência ideológica também não tiram o sono a José Sócrates. No lançamento da Fundação Res Publica, pomposamente apresentada como "think tank" à portuguesa (para pensar políticas públicas, coisa a que até hoje, presume-se, ninguém se dedicou seriamente) abriu uma auto-estrada sem portagens: o PS, sentenciou, não tem "dogmas", nem "chavões". E como abomina o "pensamento único", oferece vários. A la carte, que na casa há lugar para todos.
António Vitorino deu o mote: "Escolham o termo mais próximo do vosso coração". As opções políticas, assim inesperadamente transferidas para o campo da emoção, podem inspirar-se nos menus fornecidos por Sócrates (Centro-esquerda), Augusto Santos Silva (Esquerda democrática, trabalhismo e democracia liberal) ou Vitorino (Esquerda moderna, socialismo e social-democracia).
Enquanto cada um de nós procura na lista a etiqueta que mais lhe convém, devemos estar atentos às próximas movimentações desta gente. Com tanto ministro e deputado no parto da Fundação Res Publica, arriscamo-nos a que algum sugira que seja nacionalizada. Ou isso é dogma?