É inevitável regressar esta semana ao tema que mais tem ocupado estas minhas crónicas dominicais - a situação do país em resultado do programa de assistência financeira que subscrevemos. Alguns outros assuntos relevantes da semana justificariam a sua abordagem, mas os leitores que me acompanham e que se dão ao trabalho de me enviar os seus comentários sempre me diriam que sou lesto a falar dos aspetos negativos da governação, esquecendo deliberadamente os acontecimentos positivos.
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Ora, é facto que o Governo tem hoje razões para sorrir, face aos dados revelados da execução orçamental de 2013. Razões para sorrir, não para fazer a festa. Neste aspeto, verdade seja dita, a regra tem sido a contenção. O Executivo sabe muito bem que, sob o ponto de vista económico, o controlo do défice tal como foi conseguido tem um significado muito limitado. Mas tem já, isso sim, um enorme alcance sob o ponto de vista político. Imagine-se o que estaria a ser dito se o défice ultrapassasse a renegociada meta acordada com a troika e pense-se nas condições de tremenda fragilidade com que o Governo apareceria a preparar com os credores o período pós 17 de maio. Ter atingido este objetivo foi bom para o país, mesmo que tenhamos a convicção de que nada está ainda consolidado e de que para o conseguir se castigaram os contribuintes desigualmente e para além do necessário.
Com efeito, confirma-se agora, o Governo foi além do que lhe era exigido e errou nas previsões, impondo sacrifícios que poderiam ter sido evitados. Não é possível ignorar, neste momento, qual foi o grande mote dos confrontos entre Governo e oposição quando da elaboração de todos os orçamentos após a intervenção da troika.
Vamos ter memória. A oposição exigia do Governo capacidade política para renegociar alargamento de prazos de reembolso da dívida e reclamava défices orçamentais menos apertados que permitissem aliviar um pouco a apertada condição de vida dos portugueses; o Governo dizia que, embora desejável, isso era impraticável por intransigência dos credores.
Realmente, se fosse possível conseguir aliviar qualquer destas parcelas, a exigência orçamental seria menor e o corte na despesa à custa de reformados, pensionistas e funcionários públicos ou o aumento da receita, sobretudo por agravamento do IRS, seria menos violento. Incessantemente se referiu o exemplo da Irlanda, para falar do défice, e da Grécia, para falar da dívida.
Mas o Governo sempre se encarregou de descartar tais hipóteses que, dizia, sendo desejáveis eram inatingíveis por imposição da troika. Estávamos na fase do fundamentalismo troikista. Mais tarde, foi possível obter um ligeiro alargamento dos prazos de reembolso da dívida e, para o ano findo, conseguir que o défice se fixasse nos 5,5%, em vez dos subscritos 4,5%. Ainda assim, no final do terceiro trimestre de 2013, o Governo previa um défice de 5,9% para esse exercício. Tinha acontecido a "nega " do Tribunal Constitucional ao corte dos subsídios de férias e de Natal dos funcionários públicos e pensionistas, e o consequente corte na despesa não iria acontecer. Foi, então, a vez de o perdão fiscal vir cobrir, pela receita, a quase totalidade do que se aumentou na despesa.
Resumindo e concluindo - o Governo podia ter chegado a um défice de 8900 milhões de euros e ficou abaixo 1748 milhões, mesmo tendo sido impedido pelo TC de cortar os subsídios. Impôs, por isso, sacrifícios que não era imperioso infligir a quem já tem imensas dificuldades.
A pergunta que agora se fará é: mas não é isto muito importante para o país, num momento em que estamos dependentes do acesso aos mercados para nos vermos livres da troika? Não, o que seria muito importante era ter conseguido ficar no défice acordado. Os benefícios de ter sido "mais troikista do que a troika" não compensam o sacrifício desnecessário que se impôs a quem já está tão fustigado pela quebra dos seus rendimentos. Os mercados não são inteligentes, apenas reagem, e sempre em função de notícias ou de acontecimentos. Só uma muito má notícia poderia ter influência nas condições do nosso financiamento externo. De resto, é a situação da Europa que tem peso na decisão dos investidores, como se viu recentemente em relação a Espanha e em relação a Portugal. No nosso caso, as taxas de juro baixaram mesmo antes de se ter notícia destes resultados.
Com o mês de maio à vista, é bom ter índices favoráveis para apresentar. Mas, como agora se prova, este objetivo não era incompatível com algum alívio na bolsa das famílias que têm sido mais castigadas.
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