Poucos assuntos terão, em Portugal, sido mais maltratados que a regionalização. Escrevi maltratada e não mal tratada, não obstante haver questões, desde o financiamento ao modelo de governança, que carecem de ser esclarecidos para que a discussão se possa fazer sobre bases sérias partindo do princípio que há quem queira discutir o assunto em termos que vão para lá da demagogia da pátria una (um resquício salazarista) ou do aumento exponencial de despesas (um temor justificado, sobretudo se continuarem a ser os mesmos a mandar, atenta a experiência dos últimos dez anos).
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É evidente que a regionalização sai maltratada de debates em que uma das partes se limita a encontrar formas de camuflar a defesa de interesses instalados, argumentando como se soubesse do que está a falar. Os danos produzidos por esses maus-tratos são possíveis por ter havido quem, por cinismo ou ignorância, lhes deu azo. Estou a falar dos "amigos da regionalização", os seus piores inimigos.
Há doze anos, a regionalização parecia uma causa ganha. Reconhecia-se-lhe o potencial para minorar as assimetrias de desenvolvimento regional que, imagine-se, já então dilaceravam o país. As sondagens indicavam uma larga maioria de apoiantes. A decisão de Cavaco, adiando o processo de regionalização, era passado. "Favas contadas!" terão pensado os defensores da regionalização, maxime os socialistas. Impantes, caíram na armadilha que Marcelo Rebelo de Sousa lhes preparou, aceitando referendar o que era uma obrigação constitucional. Não contentes, ignoraram a experiência das Comissões de Coordenação e das regiões plano e inventaram um mapa esdrúxulo que suscitou oposição em muitos apoiantes da causa. A arrogância deu a machadada final, ao deixarem colar a regionalização ao caciquismo, com o contributo inestimável dos líderes do PS do Porto. O resultado é conhecido: uma derrota arrasadora.
Marcelo sabia o que fazia. No PS, um misto de ingenuidade e arrogância serviu às mil maravilhas o cinismo dos que apenas nas palavras defendiam a regionalização.
Dez anos passados, o tão temido despesismo e crescimento do Estado aconteceu. Sem descentralização, para não dizer com um reforço da centralização. As assimetrias (agora já não apenas regionais; mas também sociais) aprofundaram-se. A única coisa que não cresceu foi a economia. Tudo ao contrário do prometido pelos vencedores do referendo.
Neste contexto, é natural que a causa da regionalização ressurgisse e fosse ganhando o apoio de alguns opositores que tiveram tempo para se esclarecer (Rui Rio) ou de viver os efeitos da centralização fora de Lisboa (Pires de Lima). A experiência anterior recomendava uma abordagem prudente, conquanto determinada, com o propósito de ganhar os adversários que estivessem de boa fé e construir um consenso político alargado que, porventura, permitisse encontrar uma solução não referendária.
Só que, mais uma vez, o PS resolveu mostrar serviço e eis que a regionalização surge, travestida de menina das alianças do casamento gay, como parte das manobras para desviar as atenções da desorientação estratégica do governo. Se isto não a desacreditou de vez, o PS há-de encontrar maneira de lhe fazer o funeral. Os centralistas podem dormir descansados.