Corpo do artigo
Escrevo este artigo com medo. Lembro-me de Rui Rio e fico com medo de represálias. Mas não posso deixar de expressar livremente as minhas opiniões sobre o que, uma vez mais, se está a passar no país, sob pena de virar rato: “O medo vai ter tudo / quase tudo / e cada um por seu caminho / havemos todos de chegar / quase todos / a ratos” (Alexandre O’Neill).
A gota de água foi o anúncio de abertura de um processo disciplinar à procuradora-geral-adjunta, Maria José Fernandes, por causa de um artigo de opinião por esta assinado no jornal “Público”, em 19 de novembro passado. Artigo no qual a procuradora criticava, com toda a legitimidade e, em minha opinião, com inteira justeza, a “estridência processual” muitas vezes protagonizada por um conjunto de procuradores que não ponderam os efeitos de condenação sumária, na praça pública, que daí decorrem para os visados. Note-se que uso a expressão “não ponderam” como a mais benigna das interpretações possíveis das razões daquela “estridência processual”.
Hoje, quem ocupa cargos públicos tem medo de ser transformado em alvo do Ministério Público. E não vale aqui o popular ditado “quem não deve não teme”. Pelo contrário, o que retiramos da reiterada incapacidade de finalizar dezenas de processos com anos, ou de arquivamento ou prescrição de outros tantos, é que para temer não é preciso dever. O mesmo quando somos indevidamente confrontados com os resultados de escutas que só não são ridículas porque dão cabo de reputações pessoais e desencadearam uma crise política de enorme gravidade.
O inquérito instaurado à procuradora-geral-adjunta é um passo mais no caminho da intimidação que tem sido percorrido por alguns procuradores e pelo seu sindicato. Inquérito aberto para averiguar da possibilidade de existência de delito disciplinar num texto de opinião. Repito, num texto de opinião. Entretanto, onde não há necessidade de inquérito para saber se existe ou não delito, neste caso criminal, a procuradora-geral da República mantém-se em estado de total letargia. Crime comprovado, à vista de todos, com total impunidade, regularmente praticado: a violação seletiva do segredo de justiça numa fase em que o processo apenas é conhecido por procuradores.
Ora, este crime reiterado não é simplesmente processual. Tem consequências substantivas, substituindo a justiça pelo linchamento moral, profissional e político. É acusação sem processo, castigo sem julgamento, estigma sem defesa. No entanto, e pelos vistos, tudo isto vale menos para a senhora procuradora-geral da República do que a imposição do silêncio e a anulação do espírito crítico dentro da organização que tutela. Ou seja, a imposição do medo também entre os membros da corporação.