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Ao descrever as técnicas de fabrico e controlo, o homem emocionou-se. A voz, a ficar aguda no final das frases, parecia falar do melhor líquido do Mundo, o que corre nas artérias de Portugal. Era evidente que ele amava o azeite como outros amam, por exemplo, o vinho. À volta de uma ideia simples, a da nobreza inviolável de uma garrafa de azeite, discutia-se um drama desta civilização: a bandalheira da qualidade.
O caso começou quando quatro homens, de fato e gravata e um aspecto globalmente próspero, se sentaram num restaurante para comer peixe grelhado.
Fizeram o pedido e depois, no que mais mais tarde foi descrito com "um hábito quase rural", verteram um fio de azeite nos pratos e provaram-no com pão, isto é, começaram a fazer sopinhas.
Os homens torceram o nariz e, com visível consternação, pediram outro azeite. A empregada terá então trazido uma garrafa do balcão e em poucos minutos, por assim dizer, estava toda a gente com os azeites e já ninguém almoçou em paz.
Os homens acusavam em voz alta o restaurante de os estar a enganar. O azeite vinha numa garrafa de uma marca muito conhecida, mas o conteúdo era outro. Não prestava. Tinha vários defeitos organolépticos, impressionava negativamente os sentidos. Exigiam o livro de reclamações. E os empregados e o gerente negavam, e diziam que aquele azeite era mesmo aquele azeite. Mas pelo meio alguém terá confessado que, de facto, o que davam aos clientes não era o do rótulo, mas que nunca ninguém se tinha queixado. De maneira que a confusão estava agora a ser prensada e espremida no tribunal. Crime de fraude de mercadoria.
Vejam só o azar do gerente: os quatro homens que fizeram sopinhas não só eram profissionais do sector do azeite como, não é exagerado dizê-lo, mandavam nele.
Assim, a primeira testemunha de acusação era então presidente da Casa do Azeite, organismo que congrega os produtores de qualidade. Além disso, director da empresa cuja garrafa teria sido utilizada na fraude. E com Oliveira no nome. Há testemunhas assim. Começou devagar. Tinha um ar frágil, a voz oleada, o nariz fino. Contou à juíza:
- Veio numa garrafa de uma marca conhecida, com restos do rótulo, sendo certo que a garrafa estava a ser utilizada de forma estranha, com rolha de cortiça com um corte. Presumivelmente, como de resto se veio a verificar, o que estava na garrafa não correspondia ao conteúdo original da mercadoria.
Avisaram-no de que poderia ser acusado de denúncia caluniosa. Ele deu a entender que era uma mistela intragável. Não podia ser o azeite novo, o frutado verde de primeira prensagem que vinha anunciado no rótulo. Os advogados do restaurante puseram em causa a sua competência em matéria de azeites, o que o ofendeu profundamente. E começou a falar com o coração.
- Há azeites mais suaves, mais macios, mais fortes, mais claros. Neste caso nem estava em causa a acidez mas os defeitos! Quando se abre uma garrafa por vezes não se nota, mas é impossível esconder os vapores desagradáveis quando se põe no peixe quente, "sôtora"! Isto é um mundo maravilhoso, é como os perfumistas, os provadores de vinho!
Sabem o que é sabor a capacho? O "sabor insuportável" da juta ou sisal que fica em prensagens tradicionais mal feitas. E já se adiantava nos universos paralelos da água-ruça quando a juíza lhe perguntou o que tinha feito do peixe.
- Pode parecer incrível, mas foi a primeira vez na vida que comi sardinhas sem azeite.
Então viu-se nos olhos dele que a ofensa tinha sido muito grave, que um mau azeite pode ser um atentado à dignidade de um português.
*O autor escreve segundo a antiga ortografia

