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Claro que pode ser uma distopia: a maior democracia do Mundo, a primeira potência - um país sequestrado por Trump, o egomaníaco, o narcisista, o Calígula contemporâneo.
Hoje é o dia a seguir às eleições presidenciais dos Estados Unidos da América, mas para mim, que escrevo ontem, é o dia antes. Não sei quem ganhou e as últimas sondagens não o predizem. Embora desconfie que o arrazoado de empates técnicos favoreça Trump, as magias matemáticas do Colégio Eleitoral tornam qualquer sondagem, mesmo à boca de urna, uma coisa aparentada de oráculo de Delfos.
Não sei se hoje é o dia da histórica Kamala Harris, a primeira mulher presidente dos EUA, ou do histórico Trump, o primeiro criminoso a chegar à Casa Branca. Mas sei que tudo o que não diz respeito a Trump diz sempre respeito a Trump. E que os próximos anos serão marcados pela megalomania desse egotista alaranjado cujo valor maior é a vitória. Melhor: a aparência de vitória.
Trump foi educado na lógica da vitória a qualquer custo e aliou essa pulsão à falta de escrúpulos típica de quem não olha a meios. Nesse sentido, é totalmente previsível: sabemos o vai fazer se ganhar e se perder. Nunca deixou que a verdade ou os problemas dos outros o travassem. Tem um currículo verdadeiramente detestável, dentro e fora da Casa Branca. Nada do que é mesquinho lhe é alheio.
Queria compará-lo a um bicho, algum bicho cujas características físicas espelhassem a sua disposição de carácter, mas acho injusto para com os animais. Afinal de contas, até o peixe-bolha, que afocinha a carantonha no lodo, é mais digno do que este homem.
Do outro lado está Kamala, limpa de currículo e limpa de carácter. Assistir ao documentário da PBS sobre a vida de ambos posta em paralelo, um a impedir que afro-americanos alugassem apartamentos nos seus empreendimentos enquanto a outra ascendia a procuradora-geral da Califórnia, é ver a noite e o dia, a água e o azeite. A escolha entre os dois, mais do que política, é sobretudo moral, o que terá levado republicanos como Liz Cheney a votarem em Kamala.
Seja como for, serão anos de mentira e de ressentimento. Trump foi e continua a ser, com ou sem presidência, a personificação do ressentimento colectivo, dos maus instintos e das coisas baixas. Presidente, será ainda mais polarizador do que durante o primeiro mandato. Não presidente, continuará a dar-se como tal e a arrastar com ele meio país numa loucura comunitária que cheira a seita. Uma loucura que cheira a pólvora.
*O autor escreve segundo a antiga ortografia