O país está entregue a comentaristas. Comentaristas ministros, comentaristas deputados, comentaristas jornalistas-comentaristas, comentaristas desportistas e desportistas comentaristas, economistas comentaristas, sem fim e sem limite.
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Segunda-feira cheguei de Londres - antes tinha vindo de Itália e não há dose igual em nenhuma televisão. Cá, enchem-nos de infindáveis debates de comentaristas nos três canais de notícias. Logo que cai a noite, passamos de um imenso telejornal, em que o crime atira a política para segundo plano, para os debates de comentaristas com comentaristas, jornalistas com jornalistas, ministros com comentaristas e vice-versa.
Assegurou-me quem sabe destas coisas que é muito mais barato para um canal, por cabo ou não, ter um programa em estúdio com comentarista político, ou jornalista, ou ministro, do que qualquer outro programa informativo de reportagem, ou de investigação e informação jornalística. Assim, tudo se reduz ao serão a um estúdio de debate com deputados que parecem estar numa comissão do Parlamento, ou a jornalistas que fazem entrevistas que não o são, ou a ministros, sobretudo a ministros, entrevistados diariamente não sobre o que andam a fazer no Governo e ao país, mas a comentar a última declaração do dr. Pedro Passos Coelho.
O Governo deixou há muito de governar. Creio, aliás, que este Governo, o segundo do eng.º Sócrates, nunca o tentou sequer. Substituíram a governação pela guerrilha do comentário na televisão. Estão todas as noites no ecrã falando do PSD, das iniciativas do PSD e do presidente do PSD. O ministro da Defesa, o ministro Lacão, o ministro Sousa Pereira e, claro, o primeiro-ministro entram-nos mais em casa do que qualquer anúncio do Continente ou do Pingo Doce. Todos os dias. A comentar o que quer que seja. Com teleponto ou sem, em entrevistas ou em debates, em conferências de Imprensa.
E o mais curioso é que eles aparecem normalmente dizendo o contrário do que diziam dias antes (então de números nunca a coisa joga), para, de seguida, numerosos comentaristas jornalistas virem explicar o que o senhor ministro disse, repetindo, ou traduzindo para Português fluente o mesmo que já tínhamos ouvido. Aparecem, venerandos e obrigados a explicar melhor a "agit-prop". Acaba aqui? Não. O jornalista do noticiário seguinte noticia a síntese dos debates anteriores e ainda passam as mesmas declarações em rodapé.
Dantes, a esses chamavam-se a voz do dono, agora chamam-se comentaristas, o que veio baralhar a verdadeira e legítima opinião dos genuínos, independentes e livres "opinion makers".
No desporto, a coisa é mais fácil de distinguir porque os campos estão marcados. É igual no tempo e são mais longos que os jogos de futebol mas quem comenta é do clube de quem joga e quem joga não é o comentarista nem o jornalista. Na política, não. Tudo se baralha e a televisão assumiu uma tal importância na governação em Portugal que os ministros não nos largam e chegamos ao ponto de quem quer uma reunião de trabalho com o primeiro-ministro tem de falar pela televisão. No gabinete, a trabalhar, ele não está certamente.
Como explicar a curiosa situação de vermos senhores banqueiros a falar na televisão numa curiosa sessão, com os próprios a terem de recorrer ao ecrã para falar ao primeiro-ministro e o avisar que estamos à beira da bancarrota? Sublinho: os principais banqueiros portugueses foram à televisão para conseguir uma audiência eficaz com o senhor primeiro-ministro de Portugal. E conseguiram! Pelos vistos só assim.
Chego à conclusão que o ideal é ser comentarista de televisão, apesar do estatuto ideal pelo qual vale a pena aguardar ansiosamente ser o de deputado-comentarista. Nessa qualidade, não há qualquer responsabilidade e pode-se mesmo estar no centro, ou seja, estar fora estando dentro.
Mas o estatuto melhor de todos é ser convidado para deputado e ficar comentarista. Como em Portugal ninguém gosta de ter responsabilidades e deveres, mas toda a gente gosta de mandar umas quantas ideias e umas quantas farpas, é um sonho concretizável. Era o meu sonho. Aguardei ansiosamente esse estatuto ideal. Esperei um telefonema de quem anda a fazer as listas para dizer não e passar (com um pouco de sorte) a esse estatuto.
Como no PSD, felizmente, não há centralismo democrático e a disciplina partidária é coisa não em moda, acontecendo o que não se vê em nenhum outro partido europeu, imaginei que também eu conseguiria ter a parte boa da herança de uma tia falecida e não pagar as dívidas que deixou...
Como não consegui, resta-me uma esperança. Que os portugueses, fartos de ver os comentários, as conferências de Imprensa, os não-debates do nosso primeiro-ministro e dos diversos ministros da propaganda e da guerrilha, mais os jornalistas que comentam a guerrilha dos ministros, desliguem o televisor e leiam livros. Em papel ou em e-books, para alegria dos autores e editores e também para garantirem a sua sanidade mental e o bom senso para passarem os longos dias até ao dia 5 de Junho - momento em que, espero, regressaremos à paz e sossego de reconstruir um país derrotado, humilhado e sem esperança.