Como celebrar a Declaração Universal de 1948?
1. Entendeu o Conselho Nacional de Educação assinalar os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) com a realização de um seminário, no dia 26 de novembro.
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Dificilmente se encontraria lugar mais feliz para celebrar o aniversário da Declaração Universal. Ao contrário dos auditórios de juristas que, frequentemente, afunilam a reflexão para o âmbito dos trâmites judiciais - esquecendo que os tribunais são apenas o último recurso para remediar a violação de direitos - o seminário do CNE soube abordar esta complexa problemática com a devida latitude, reconhecendo na prática dos Direitos Humanos - ou seja, o exercício de direitos próprios, o reconhecimento dos direitos dos outros e a garantia da proteção de todos eles - um processo exemplar de ensino e de aprendizagem.
2. Até ao fim do século XX, testemunhamos a consolidação doutrinária do triunfo universal dos Direitos Humanos! No despertar assombroso dos horrores da Segunda Guerra Mundial, em Paris, no ano de 1948, o Ocidente impôs ao Mundo a aprovação unânime da Declaração Universal dos Direitos Humanos na recém-criada Organização das Nações Unidas. Muitos anos depois, a proclamação solene dos direitos fundamentais iria concretizar-se com o Pacto dos Direitos Civis e, mais tarde, com o Pacto dos Direitos Sociais, aprovados com vista a garantir força jurídica efetiva às intenções generosas anunciadas em 1948. Persistia contudo a fratura atávica entre as liberdades conquistadas pelas revoluções liberais dos séculos XVII e XVIII - em Inglaterra, nos Estados Unidos e em França - e as aspirações mais tarde designadas por direitos económicos, sociais e culturais, a que se reconhecia o alcance modesto de "parentes pobres" dos primeiros. Só em 2000, graças à clarividência do presidente da Convenção para a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia - o alemão e democrata-cristão, Roman Herzog - foi superado tal atavismo. E, apesar das teimosas objeções dos representantes do Reino Unido então governado pela "terceira via" de Tony Blair, a presidência da Convenção - que tive a honra de integrar em representação do primeiro-ministro de Portugal, António Guterres - conseguiu o feito histórico de aprovar a primeira declaração internacional de direitos que pelo seu articulado e estrutura inédita, finalmente superou o contraponto anacrónico entre os direitos do liberalismo revolucionário e as aspirações cívicas e sociais das democracias contemporâneas. A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia consagrou o "princípio da indivisibilidade" que promoveu os direitos económicos, sociais e culturais ao patamar normativo das liberdades cívicas que inspiraram as primitivas revoluções liberais.
3. O fim do século XX marcou o início de uma viragem funesta. Uma vez aplacado o fantasma do comunismo anunciado no Manifesto de Marx e Engels de 1848, com a implosão da União Soviética. E a pretexto da guerra contra o terror declarada por George W. Bush após o atentado contra as torres gémeas em Nova Iorque, iniciou-se a subversão minuciosa e sistemática de todos os direitos tomados como aquisições irreversíveis dos regimes democráticos. Seria um exercício irresponsável, da mais leviana hipocrisia, celebrar os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos sem ponderar as consequências perversas da conjugação da tentativa de desmantelamento das conquistas civilizacionais dos últimos 70 anos, em nome da globalização e das tecnologias, com as derivas autoritárias na Hungria e na Polónia, a tragédia do Brexit, a eleição de Trump e Bolsonaro nas Américas e a partilha do poder com os neofascistas, nos governos da Áustria e de Itália. Afinal, está tudo por fazer! O combate pelos direitos humanos ganhou um novo sentido e redobrada urgência.
*DEPUTADO E PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL