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Como é que se chega a isto? Perguntamos todos, perante o escalar do mau ambiente no Parlamento, com a permanente falta de respeito da bancada da extrema-direita, que quotidianamente insulta, enxovalha e importuna os outros parlamentares, mas principalmente as mulheres de esquerda, suas vítimas preferenciais. A banalização do desrespeito (pelos outros representantes do povo e pelas instituições) vai baixando a fasquia da decência e torna-se o diapasão, sobretudo, quando o presidente da Assembleia se escusa a tomar atitudes que travem o descambar da situação. Se este não toma uma atitude firme quando um deputado faz a saudação nazi em plena votação, não é de estranhar que os insultos não lhe pareçam dignos de repreensão.
Ao mesmo tempo, não é estapafúrdio que isto se normalize, tendo em conta o espírito da época. Se pensarmos que a toxicidade do debate nas redes sociais, onde tantos têm a ilusão de exercer a sua participação política, acaba por contaminar todas as esferas do debate público, percebemos que se normalizou o insulto como reação à discordância. Cavam-se trincheiras e todo o contraditório define distâncias irreconciliáveis. Se não partilhamos dos mesmos valores, desconfiamos imediatamente das intenções alheias, de interesses ocultos ou falta de informação, fazemos juízos morais, reagindo com dois ou três insultos e bloqueando a conta alheia.
Foi dentro desta lógica de gritaria e animosidade que o Chega cresceu, alimentando-se da raiva contida, da desinformação e capitalizando a legitimação de discursos de ódio, que antes das redes sociais não tinham amplificação (ficando-se pela mesa de café, exalados entre dentes, porque não eram bem aceites socialmente). O partido de André Ventura veio aquecer as costas destes descontentes que, finalmente, veem o insulto legitimado na casa da democracia, como num grande tasco ou num táxi coletivo, purgado de vergonha e amplificado pelos média.
O registo do Facebook e do Twitter chegou ao Parlamento e este tornou-se uma enorme caixa de comentários, em que é normal chamar prostituta a uma deputada de esquerda, aberração a uma deputada com deficiência, fazer comentários jocosos sobre os corpos dos parlamentares, ficar aos gritos importunando as intervenções dos colegas, criando um ambiente de bullying e importunação, debaixo das adormecidas barbas de Aguiar Branco, o Zuckerberg de serviço.
Estamos conformados com esse registo online e estamos a habituar-nos a vê-lo instalado na Assembleia, da mesma forma que estamos habituados a uma versão hostil e boçal da humanidade, incapaz de esboçar empatia e demonstrar solidariedade. O automatismo de culpar a vítima, de culpar o pobre, de culpar o imigrante, de culpar o refugiado, porque se pôs a jeito, porque é preguiçoso, porque é diferente, porque não é de cá, está em todas as esferas do debate público e, com ele, estamos todos sob o jugo da lei do mais forte, em que o rufia sai sempre vitorioso.