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A literatura para a infância é uma delícia e se, nos últimos anos, com a maternidade, tenho sido leitora (em voz alta) de uma considerável quantidade de bons livros para crianças, tenho tido também a oportunidade de escrever os meus.
Sendo que, mesmo que fora de pé, por estar a escrever para um público deveras exigente e num registo que não me é habitual, até por ser em prosa, divirto-me muito a resgatar o Peter Pan interior e o meu próprio imaginário infantil.
A minha predileção pelas palavras nasceu na primeira infância, com as canções do infantário e as lengalengas para todas as ocasiões, com as histórias à hora de dormir pela voz da minha mãe, sobretudo as que vinham em rima, com as piadas do meu pai e o seu humor de linguagem, nessa transmissão afetiva de um património comum que vem da tradição oral e da literatura para a infância e que sempre me fascinou. Essa relação lúdica com a palavra, a poesia, a música, a narrativa, ficou em mim e tornou-se, muito mais tarde e inadvertidamente, uma profissão.
Ora, em mais uma das minhas incursões nesse campo florido, lanço por estes dias um novo livro de prosa para crianças, chamado "Como é que um caracol foge de casa?", que conta com ilustrações de Matilde Horta. Trata-se da história de um caracol que estava muito cansado de ter a casa às costas e que queria livrar-se desse fardo, mas impedido pelas suas circunstâncias de fugir da própria carapaça, decide pelo menos tirar férias e desanuviar dos problemas da horta, iniciando um périplo (que rapidamente se torna uma saga) até à praia.
Durante o percurso, assolado pela solidão e pelo cansaço, vai tentando arranjar companhia, metendo conversa com outros animais, mas rapidamente percebe que estão todos demasiado ocupados a garantir uma habitação segura e sem tempo para lhe dar atenção. Enfadado, o caracol insiste, sem noção do próprio privilégio, e só quando chega ao seu destino e encontra outros animais como ele, é que põe tudo em perspetiva.
Tendo como pano de fundo o tema da habitação e da noção de privilégio, a narrativa é engraçada e irónica, cheia de diálogos bem-humorados e ilustrações coloridas. E acreditando que podemos e devemos falar sobre temas sérios e complexos com os mais pequenos, creio também que os livros são excelentes atalhos para essas conversas, sobretudo porque estimulam os questionamentos e as reflexões, sem peso e com uma narrativa que ajuda ao entendimento. Tudo isto em simplificar demasiado a linguagem ou infantilizar o discurso, porque é das palavras novas que nascem as melhores perguntas, tal como é das perguntas que nascem as melhores aprendizagens.
O caracol está na rua, só não o apanha quem não quer (nem é preciso correr)!