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No momento em que o PS se prepara para assumir o poder nas próximas eleições legislativas, a nuvem que paira sobre a esquerda portuguesa confunde-se com nevoeiro cerrado. Não se pode falar sequer num microclima ou de uma pequena porção de estrada entrecortada com nuvens baixas em voo nocturno. Quase tudo o que paira em suspensão à esquerda do PSD são pedaços de pequenos vazios ou sombras de nada, estilhaços cortantes ou algodão usado. Não é um triste privilégio da esquerda, pasme-se. À direita, os passos para um novo Rio são dados de forma inelutável mas disfarçada, enquanto Portas se escapa dentro de uma actualidade dourada que lhe permite dar o visto por não visto. It"s gold. Sócrates tem muita culpa nisto.
Neste fim de semana, a motivação extra para António Costa no XX Congresso do PS foi a de purgar o partido do nome que, meses antes, tanto quis abraçar no momento do confronto directo com António José Seguro. No palanque, sob os holofotes de notáveis em desfile, o nome de Sócrates não terá sido proferido mais do que 44 vezes. Mas nas mesas, corredores, nos bastidores e nas esquinas angulares, difícil era encontrar duas pessoas em diálogo onde o nome do ex-primeiro-ministro não fosse citado, abordado ou motivo de assombração. António Costa não podia fazer algo diferente face aos últimos acontecimentos que levaram à detenção de José Sócrates, nem poderia fazer algo de novo em relação a tudo o que pensou, disse e passou para o Congresso: o pedido de maioria absoluta como condição de governabilidade, o abraço de urso ao Livre (transformando fatalmente em muleta - e provavelmente só em caso de necessidade - o que não é ainda um partido), a exclusão de "seguristas" das proximidades, a encenação de ruptura de Francisco Assis como elo de ligação a uma hipotética coligação com a direita caso os resultados eleitorais não sejam o oásis que Costa augura. Deparo-me com a palavra e recordo Cavaco Silva e a sua teoria do oásis no início dos anos noventa da sua maioria absoluta. Ainda não foi agora, mas não faltará muito para que António Costa proclame, a plenos pulmões, o sonho de uma maioria e de um presidente.
Vem nos livros da natureza humana e nas tradições dos congressos reverenciais: negar para depois aplaudir de pé. Este foi mais um Congresso de negação, a piscar o olho à rarefacção da esquerda mas com a mão estendida e preparada para acertar à direita. Pela certa. O futuro será mais do mesmo nos equilíbrios tácticos a que o Bloco Central sempre nos habituou, génese da sua existência e da sua perpetuação no poder. A nuvem do PS desloca-se, portanto. Alva, tez imaculada, quando tudo são rosas. Cinza, movediça, quando trata de dar voltas no trapézio onde sempre encontra o seu equilíbrio. À direita ou à esquerda, a nuvem move-se. É indiscutível a vontade e capacidade de António Costa para encontrar caminhos eleitorais à esquerda e é por isso mesmo que não perde tempo. A perda de tempo e de memória acontecerá se virmos a esquerda a encostar-se no ombro de políticas que não se recentrem consistentemente nas pessoas e na recuperação, pelo desenvolvimento e pelo emprego, do que lhes foi subtraído por décadas de "centralismo democrático" no bloqueio central PS/PSD.
Perante a nuvem PS, como fazer, como a enfrentar, esperar para ver ou dar de caras? Após o benefício da dúvida, a resposta deve ser clara: é preciso ver o jogo para que seja cristalino como a chuva que cai das nuvens em dias de verão. Mais transparente. Sem abraços de urso na linha de partida, com vontade de diálogo mas sem transigir por lugares. Atravessar uma nuvem requer preparação e, olhando para o lado, poucos terão ligado os faróis de nevoeiro quando, só para agravar a viagem, a mala está repleta de bagagem pesada. Sejamos claros. Nem o PCP está preparado para o diálogo, nem Costa o deseja. Nem o BE, após uma mesa nacional onde ficaram bem patentes as suas fragilidades, o ambiciona (quando, neste caso, Costa não desdenharia). A decisão de enfrentar uma nuvem não está tomada e o resultado só poderá ser, a curto prazo, o de assumir que o céu já não é o limite nem desceu à terra. A condenação a viver na nuvem está mesmo a meses de distância e não é uma nuvem que se encontra nos sonhos. Ninguém dançará na linha do horizonte. Para os culpados da implosão da esquerda em Portugal, em contraciclo com tantos países europeus, olhar para a linha do horizonte tem sido o mesmo que olhar para o abismo.