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1. Muito dificilmente se vislumbra por que artes poderão ser justificados os bombardeamentos cirúrgicos que foram lançados contra a Síria com vista à destruição de supostos laboratórios e arsenais de armas químicas que, todavia, aguardam ainda pela chegada da competente inspeção internacional. Nem subsistem razões para admitir que tais atos de pirataria aérea tenham sido movidos por uma preocupação séria de prevenir uma grave crise humanitária que, desgraçadamente, apenas viria somar mais um episódio à continuada tragédia Síria que conta já sete anos de indiferença por parte dos "generosos benfeitores" que dela agora se lembraram....
2. Apesar de tudo, há que reconhecer que esta súbita aliança constitui uma péssima surpresa quer pelas fragilidades que expõe quer pelos traços caricaturais que revestiu. A França, de Emmanuel Macron, com o ministro dos negócios estrangeiros de Theresa May, Boris Johnson, aliados a Donald Trump, o presidente americano, para bombardear três alvos estratégicos na Síria, conforme anunciado pelo último, nas redes sociais!!! Se a "compreensão" manifestada por aqueles países da UE e da NATO que preferiram, contudo, não colaborar nessa aventura já colocaria uma questão de interpretação complexa, a "oportunidade" que dizem reconhecer à dita intervenção revela-se ainda mais opaca.
3. De facto, "compreensão" e "oportunidade" são termos codificados que indiciam uma linha de clivagem que hoje atravessa a NATO, os estados-membros da União Europeia e as forças políticas de um espaço que, por atavismo ideológico, continuam a designar por "Ocidente". No preciso contexto das relações entre estados e das suas relações com as organizações de que fazem parte, a palavra "compreender" significa o contrário de "aderir". Por isso podemos concluir que com esta fórmula diplomática utilizada, designadamente, pelos governos de Portugal e da Alemanha, se pretendeu realmente inscrever uma diferença e uma distância que requerem ponderação aprofundada.
4. Ainda que o "atlantismo" continue a ser marca incontornável da nossa localização geoestratégica, teremos bons motivos - na era da globalização que todos apregoam a propósito de tudo e de nada - para encetar uma séria reflexão sobre o que resta dessa semântica, em busca de algum sentido útil que possa preservar enquanto orientação e referência para a definição de uma política internacional. E, claro, perguntar pelo papel que a Europa aí pretende desempenhar.
5. E a título liminar, convirá revisitar o texto da Constituição da República Portuguesa que nos oferece interessantes contributos para iluminar essa reflexão urgente.
6. "Portugal rege-se nas relações internacionais pelos princípios da independência nacional, do respeito dos direitos do homem, dos direitos dos povos, da igualdade entre os estados, da solução pacífica dos conflitos internacionais, da não ingerência nos assuntos internos dos outros estados e da cooperação com todos os outros povos para a emancipação e o progresso da humanidade". (n.º1, art. 7.º, da Constituição da República Portuguesa)
7. "Portugal preconiza a abolição do imperialismo, do colonialismo e de quaisquer outras formas de agressão, domínio e exploração nas relações entre os povos (...)
8. (...) bem como o desarmamento geral, simultâneo e controlado, a dissolução dos blocos militares e o estabelecimento de um sistema de segurança coletiva, com vista à criação de uma ordem internacional capaz de assegurar a paz e a justiça nas relações entre os povos" (n.º 2, art. 7.º, da Constituição da República Portuguesa)
9. Ora aqui está como a nossa Lei Fundamental - que a todos obriga! - nos continua a oferecer relevantes pistas, valiosas sugestões e salutar inspiração para um bom princípio de conversa.
DEPUTADO E PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL