Comunidades Intermunicipais e coesão territorial (II)
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Este é o segundo texto de reflexão sobre as CIM e a coesão territorial. Nas nossas pequenas vilas e cidades do interior de baixa densidade caminharemos, progressivamente, para uma oferta integrada e complementar de bens e serviços comuns, sob a forma de uma rede inteligente que utilizará as melhores práticas tecnológicas e digitais, mas, também, comunitárias e institucionais, para impedir a migração de pessoas, bens e serviços fundamentais, de qualquer natureza, para as áreas litorais. Na sequência dos efeitos devastadores da pandemia da covid 19, está aí o programa de recuperação e resiliência da União Europeia com meios financeiros substanciais e, agora, também, o PT 2030, é preciso, pois, desde já, preparar as diversas economias regionais e as CIM em especial para as estratégias de recuperação e desenvolvimento que são necessárias. Agora que se procede, também, à descentralização e transferência de competências para vários níveis de administração (regional, intermunicipal e municipal) importa saber em que níveis vamos colocar a provisão de serviços comuns fundamentais como, por exemplo:
- Os transportes públicos e a sua interoperabilidade à luz da mobilidade suave,
- As medidas de combate contra as alterações climáticas e a redução das nossas pegadas,
- O abastecimento local de alimentos, a agricultura comunitária e o institutional foods,
- A oferta de assistência médica, cuidados ambulatórios e serviços de apoio domiciliário,
- A oferta de serviços ambientais e serviços culturais de lazer e recreio,
- A oferta de serviços de segurança pública e proteção aos grupos mais vulneráveis,
- A oferta de serviços públicos administrativos, de serviços postais e bancários,
- A oferta de serviços de ensino e formação profissional para a transição digital,
- A proposta de novas cadeias de valor CIM, intermunicipais e inter-regionais.
Uma Comunidade Intermunicipal, enquanto economia de proximidade e sistema produtivo local (SPL), pode vestir a pele de uma “região-cidade” e desempenhar o papel de ator-rede do respetivo sistema produtivo local. O que eu quero aqui salientar é que o SPL de uma CIM, nesta aceção, representa o seu sinal distintivo mais relevante. Não é uma tarefa fácil, mas é uma tarefa que vale a pena realizar. Neste sentido, as comunidades intermunicipais (CIM), já constituídas e em funcionamento, julgo que merecem uma oportunidade de se instituírem como territórios de referência, mesmo que, em alguns casos, tenhamos dúvidas acerca da sua maior ou menor pertinência. Quando refiro as comunidades intermunicipais estou a pensar, em especial, na arte da composição dos territórios em rede e, nesta composição, o papel da economia digital no cruzamento e na convergência entre o mundo físico de entidades muito diversas e o mundo digital de plataformas colaborativas intermunicipais e interassociativas.
Os argumentos para esta arte da composição territorial são fáceis de entender. De um lado, temos a emergência de tendências pesadas que marcarão o próximo futuro – a transição ecológica, a transição demográfica, a transição digital, os grandes riscos, as grandes migrações - do outro, temos a transição dos territórios-zona (T-Z), verticais e corporativos, para os territórios-rede (T-R), horizontais e colaborativos. É bom não esquecer que vivemos ainda na chamada logística dos territórios-zona onde predominam as logísticas de fronteira e onde os custos de transação destes T-Z são muitovigiados pois eles são uma fonte privilegiada de lucro e vantagem no sistema de poder em que vivemos.
As CIM, de fresca data, não têm ainda a legitimação e a certificação da história longa, por isso elas precisam urgentemente de fazer prova de vida. Há quatro áreas onde essa urgência salta à vista, uma vez que são potenciais vítimas da virtualização da sociedade: em primeiro lugar, o modo como reocupamos um território cada vez mais “desertificado” de serviços públicos, em segundo lugar, o modo como promovemos e reorganizamos um mercado de trabalho cada vez mais rarefeito, em terceiro, o modo como estimulamos o capital exterior à CIM a ingressar nestas regiões, finalmente, o modo como passamos da criatividade científica e técnica à inovação empresarial e social.
Infelizmente, estrutura e sistema são conceitos pouco considerados e praticados, quando, hoje, se fala de políticas públicas e dos seus múltiplos efeitos internos (internalidades) e externos (externalidades). Nas fileiras corporativas em que hoje se constituem muitas das práticas administrativas e governativas, os efeitos internos e externos são subestimados e negligenciados e, quase sempre, os efeitos negativos são socializados pelos contribuintes. Não há nenhum software específico para absorver ou canalizar os efeitos dispersivos das medidas de política e assim controlar a efetividade da política de coesão territorial. Quer dizer, tanto os efeitos internos (as internalidades) no território de referência como os efeitos externos (as externalidades) nos territórios adjacentes não são controlados ou monitorizados por nenhuma entidade pública ou privada, ninguém procede nesse sentido e, assim, este conjunto de efeitos acaba mesmo por se fazer sentir em ordem dispersa com pouco ou nenhum efeito de aglomeração.
Se olharmos à nossa volta, a falta de mapeamento gravitacional impede-nos de ver como funcionam no terreno as várias cadeias de valor, em especial, as mais pequenas. Só conhecemos as redes centralizadas ou verticais, com maior visibilidade, não conhecemos ou conhecemos mal as redes descentralizadas e distribuídas e, assim, perdemos uma boa parte dos efeitos arteriais e capilares dos pequenos investimentos e empreendimentos. Ora, nas CIM e nas pequenas vilas e cidades do interior são os pequenos empreendimentos e os seus efeitos capilares e reticulares que predominam.
Dito isto, regresso aos défices de conhecimento e observo o que se passa à nossa volta. Nos últimos anos foram criadas em muitas regiões do país, com o apoio de fundos europeus e nacionais , o que poderíamos denominar como o embrião de comunidades inteligentes: parques de ciência e tecnologia, centros de investigação e desenvolvimento, polos tecnológicos, centros de negócios, ninhos de empresas, incubadoras e aceleradoras de startup, espaços de coworking, uma rede de smart cities, uma rede de living labs, uma rede nacional de associações de desenvolvimento local, uma rede rural nacional, sociedades de capital venture, uma Startup Portugal, uma associação de business angels, hubs tecnológicos e criativos, para além de muitas associações empresariais de geometria muito variável. Pensemos, por um momento, nos imensos efeitos difusos e dispersivos, de duvidosa sustentabilidade, com origem em todas estas presumidas comunidades inteligentes, pensemos no seu impacto aglomerativo e coesivo sobre os territórios de baixa densidade e ficamos, de imediato, com um amargo de boca no que diz respeito à sua eficácia, eficiência e efetividade. Com algumas exceções, como é evidente.
E porque é que isto acontece? Por faltar, justamente, um ator-rede ou uma curadoria territorial que cuide do efeito estrutura ou sistema, ou seja, que saiba praticar que o todo é maior que a soma das suas parcelas. Não há coesão territorial e smartificação das CIM que resistam a estes efeitos difusos e dispersivos. Muitos dos efeitos externos das entidades referidas não são monitorizados e, mais tarde ou mais cedo, acabam por perder-se na fragilidade dos tecidos empresariais municipais e intermunicipais.
Notas Finais
Em matéria de coesão territorial, sem uma conexão inteligente protagonizada por um ator-dedicado, o ator-rede, e sem uma estrutura de missão, a curadoria territorial, que cuide dos bens comuns da comunidade intermunicipal, não teremos resultados nem redução da vulnerabilidade territorial. Para reforçar esta asserção e a necessidade de uma curadoria territorial para as CIM lembro, mais uma vez, os impactos assimétricos das grandes transições já antes referidas. Doravante, as tecnologias digitais serão um poderoso instrumento de governação territorial, mas elas terão de fazer prova de vida in situ e não apenas ex situ sob pena de a tão propalada coesão territorial ser pouco mais do que um logro.
E, a terminar, uma última sugestão: por que não, em cada CIM, uma escola de artes e tecnologias à semelhança das antigas escolas industriais e comerciais do século XX para fazer nascer os novos talentos? E por que não aproveitar o especial networking das instituições de ensino superior que estão particularmente vocacionadas para poderem funcionar como instituições-plataforma, pois podem funcionar em canal aberto com a multidão, como uma placa giratória de problemas, projetos e colaboradores, em múltiplas formas e formatos de crowd sourcing, crowd learning e crowd funding?
Finalmente, se houver muitas dúvidas acerca do dispositivo CIM, teremos sempre à nossa disposição as antigas capitais distritais e as futuras capitais regionais, isto é, uma proposta de smartificação para as cinco regiões administrativas do próximo futuro.