Subitamente, à hora de jantar de quarta-feira, o primeiro-ministro entra-nos em casa, num momento completamente inoportuno - meio país seguia o jogo do Benfica – e corta-nos os salários, leva um mês de ordenado dos portugueses, desfaz o abono de família, põe-nos mais IVA, congela as reformas.
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Felizmente, o país atordoado zarpa para o jogo do Benfica na certeza de que aquele não é o eng.º Sócrates, esse grande amigo dos portugueses, que nos traz sempre boas notícias e nos aparece nos ecrãs defendendo à outrance o Serviço Nacional de Saúde, o Estado Social, os rendimentos de inserção, os subsídios disto e daquilo para que nada nos falte. Este não é o nosso primeiro que nos aparece no ecrã sereno, fazendo jogging e tratando do bom estado de saúde de dezenas de seguranças que gostam (e se não gostarem faz-lhes bem à saúde) de correr pelos calçadões do Mundo, nas manhãs de espantosas cimeiras mundiais, que permitem tratar por tu os Chávez, os Eduardos dos Santos, os Kadafis e outras importantes figuras mundiais e falar estrangeiro - inglês, castelhano. Esse sim, é o nosso primeiro. Esse vem sempre dar-nos boas notícias e tirar-nos o medo de uns estrangeiros que nos querem atacar e chegam disfarçados de agências de rating, ou especuladores internacionais, ou alemães súbditos da sra. Merkel, essa alemã vinda do Leste que nos ameaça constantemente, em vez de nos financiar as dívidas como era, evidentemente, sua obrigação - os ricos que paguem a (nossa) crise se eventualmente ela existir.
Andava o país descansado com as palavras sempre serenas e confiantes do eng.º Sócrates, repetidas com mais ou menos imaginação pelos restantes ministros e pelos comentaristas pró-governo, jornalistas seus simpatizantes e dirigentes do PS que nos sossegavam dos pessimistas militantes, dos profetas da desgraça e das notícias dos jornais de economia internacional que nos metiam, a nós, portugueses, entre os PIGS. Pigs nós? Postos assim entre os mal comportados da Europa, ao lado dos irlandeses, dos espanhóis (claro que somos vizinhos) e, sobretudo, dos gregos (de quem, aliás, só temos más recordações e detestamos desde que nos estragaram o nosso Euro que com tanto carinho organizámos e para o qual fizemos estádios de Norte a Sul do país, orgulho da nossa capacidade de embelezar Portugal com coloridos gigantes de cimento).
Estávamos, pois, sossegados porque o nosso primeiro-ministro tinha passado o Verão a defender-nos de uns vírus ou ácaros que queriam obrigar-nos a pagar portagens e ele e os seus ministros a procurar arranjar soluções decentes, e fazer passar o tempo, o que nos permitiu nas férias andar por aí e ganhar uns preciosos meses. Em Agosto, estivemos sossegados sem portagens e sem o professor Medina Carreira e outros pessimistas militantes que desapareceram dos ecrãs e nos deixaram em paz, saboreando os bons sinais que governantes socialistas nos deixavam para nosso consolo e sossego. Em Setembro, para descanso nosso, chegou o primeiro submarino, felizmente, renovou-se a frota das águas de Portugal, os gestores das empresas públicas deficitárias continuaram a receber os seus prémios de bom desempenho, os assessores dos vereadores das Câmaras do país a receber ordenados decentes de 3500 euros para iniciarem dignamente a sua carreira política, a par dos assessores dos gestores das empresas públicas e os assessores dos directores das empresas municipais e até, num sinal de grande confiança e de que o país vai no bom caminho graças ao nosso 1.º e à sua equipa, o governador civil de Lisboa mandou comprar carros blindados novos para a cimeira da NATO, em vez de usar os pechisbeques da GNR.
Passou quarta-feira, o Benfica perdeu e o nosso primeiro-ministro, felizmente, retoma o seu espírito de confiança e dá ânimo ao país. Vem à televisão garantir que o TGV avança rumo ao Poceirão ou talvez a Espanha, já não sei bem, e que a diminuição de salários da Função Pública é passageira, e embala-nos. Para isso, ele tem apenas de resolver duas pequenas contrariedades que às vezes contaminam tudo: calar quem disser mal e pôr o líder do PSD a assegurar desde já que aprova o Orçamento mesmo sem o ler. Calar quem disser mal é vital porque as agências de rating, a sra. Merkel e os especuladores internacionais têm por aí gente (agentes, mesmo certamente) que os vêem na televisão e ouvem os pessimistas militantes em vez de ouvirem o ministro das Obras Públicas, por exemplo. E o dr. Pedro Passos Coelho é completamente irresponsável se não disser desde hoje que vota favoravelmente o Orçamento que não conhece, que não foi entregue no Parlamento (esse pequeno pró-forma inventado por alguns democratas, com a mania de copiar os ingleses). Que ideia a do dr. Passos Coelho e do PSD de quererem ler e conhecer o Orçamento em vez de assegurarem de imediato que o aprovam e aclamam e o assinam de cruz, como nós todos fazemos com as infindáveis letras pequeninas dos papéis dos bancos e dos seguros. E depois o que lhe adianta ler o Orçamento se o nosso calendário assegura que até Junho de 2011 temos PS no Governo e ao leme do barco o eng.º Sócrates? Vamos a Coimbra ver os U2 que não vale a pena perder tempo com ninharias. Concentremo-nos no essencial.