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O primeiro-ministro britânico decidiu fazer um discurso de Páscoa diferente dos comprimidos para dormir habituais nestas alturas. Invocou com veemência o facto de ser cristão, a circunstância de o Reino Unido ter uma identidade cristã e, não menos importante, David Cameron referiu-se aos cristãos que, por esse Mundo fora, são atacados, brutalizados, violentados ou assassinados. Pode gostar-se ou não do personagem, mas neste caso não esteve mal. Por isso, adiante.
Adiante, não. É que alguns daqueles ultra-qualquer-coisa-desde-que-seja-à-direita-da-direita logo reagiram com especial frémito, quase excitação, vendo na breve intervenção de Cameron coisas que ele de todo não disse.
Tendo-o já escrito, posso reafirmá-lo: atualmente, se alguém for atacado por ser cristão, nas nossas sociedades "cristãs" nota-se mais pudor em falar do assunto em defesa da vítima do que nas situações em que, havendo vítimas, elas o sejam por professarem outra ou outras religiões. Ora, no mínimo, o cristão-vítima tem o direito de esperar ser tratado com o mesmo empenho, caridade e até piedade que aquele que não o é.
Não é porém defensável que, nestas situações, salte logo das tocas mais escuras o discurso extremista e vingativo, a reclamar a pele do agressor (sempre identificado com o Islão) e intervenções "humanitárias" e o regresso da política da canhoneira. Muito gostam de pólvora!
Cameron, por exemplo, fala dos cristãos vítimas de perseguição em geral, e até fala da Coreia do Norte. Mas o extremista detesta a complexidade: por isso, logo reduz a questão a cristãos contra "Estado" "Islâmico" ou, simplifique-se ainda mais, a cristãos contra islâmicos. E, se Cameron não diz nada sobre intervenções militares, que interessa? Dá-se a entender que o disse.
Finalmente, cabe lembrar que o próprio Cameron, tão compungidamente identitário, poderia com eficiência olhar para o seu próprio não-exemplo.
É que, no Reino Unido, este primeiro-ministro tão cristão tem fechado os olhos à pouca vergonha dos "tribunais" "islâmicos", que administram a "justiça" e aplicam "penas" que repugnam a um Estado de direito democrático, quanto mais um em que o cristianismo tem a influência que Cameron reivindica. Este mesmo Reino Unido, tão cristão, aceita agora que a lei islâmica (ou como tal assumida) possa produzir efeitos jurídicos no Reino Unido. Bonito.
Àqueles que tanto se excitaram com o discurso de Cameron, aconselho por conseguinte calma ou um duche fresquinho. Porque, na expressão deliciosa anteontem aprendida num casamento, estão a confundir a tomada com o focinho do porco.