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A clássica pergunta deveria ser: onde é que estavas SEM o 25 de Abril? No meu caso, a resposta seria “não sei”, mas (com toda a certeza) numa situação bem diferente. Viveria seguramente uma outra vida, talvez noutro país, pois sem a democracia, ser o que eu sou, acreditar no que acredito, fazer o que faço, defender o que defendo, seria altamente desaconselhável, senão impossível.
Muito provavelmente, não teria tido acesso tão facilitado à música que ouvi na infância e que marcou para sempre a minha conceção de música, sempre na relação com a palavra e com a palavra como veículo de mensagem. Isto porque, caso ainda estivéssemos em ditadura, os meus pais teriam de esconder muitos daqueles discos do Zeca, do Fausto, do Zé Mário e do Sérgio, e não sei se mos tinham explicado da mesma forma, descodificando as ambivalências que serviam para driblar a censura, de forma profunda e sem preocupações.
A escola pública e de qualidade não teria existido e a minha adolescência e formação teriam sido totalmente diferentes. Não poderia ter dedicado alguns anos ao associativismo antirracista; não teria tido a mesma liberdade de militar num partido de esquerda (e, insistindo, teria pagado caro por isso); não poderia ter encontrado a cultura hip-hop, num país fechado sobre si próprio em que uma contracultura fundada pela comunidade afro-americana nunca poderia ter espaço de crescimento, sendo inevitavelmente reprimida; não poderia, depois, ter estudado Sociologia, porque as Ciências Sociais eram praticamente inexistentes na oferta curricular das nossas universidades, muito pelo seu potencial crítico e reflexivo; e, certamente, não teria feito Erasmus ou tido direito a uma bolsa de estudo para fazer um doutoramento noutro país.
A minha carreira então seria uma impossibilidade ainda maior. A ideia de uma mulher, rapper, com letras abertamente feministas, abordando temáticas políticas, sociais, emocionais e fazendo da música um veículo para falar de causas importantes, como a ecologia, seria estapafúrdia e altamente evitável no antigo regime, sob pena de ser perseguida (como tantas mulheres artistas que corajosamente resistiam antes de 74). Já para não falar dos múltiplos desdobramentos da minha atividade artística para além do palco, na escrita para a infância (não menos política), nas crónicas semanais, nos projetos sociais e comunitários que fui fazendo nos últimos anos, nas entrevistas ou conversas públicas, já que, em ditadura, nada disso seria sequer possível de concretizar, pelo menos sem censura, perseguição e repressão.
Por tudo isto, sinto que a minha consciência histórica e a dívida de gratidão com todos (e principalmente todas) o/as que lutaram pela nossa democracia, me impelem a ancorar a minha criação artística na realidade, a ser crítica, a exercer a minha liberdade nesse exercício utópico de fazer da arte ferramenta e megafone. Se eles e elas o fizeram na clandestinidade, no exílio, sob tortura e na prisão, quem somos nós para desistir ou suavizar em Liberdade?