Uma vez mais perturbou-me (como já havia perturbado a história da austríaca Elisabeth Fritzl, mantida em cativeiro pelo próprio pai, ou o episódio das três mulheres raptadas em Cleveland, Ohio, por Ariel Castro), a notícia sobre Anatoly Moskvin, o historiador russo de 46 anos de idade que desenterrava meninas de três a 12 anos de idade, mumificando-as e vestindo-as como bonecas, preso em 2011 depois de os seus pais terem descoberto 150 cadáveres em casa dele.
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"Perturbar" é um dos verbos possíveis. O Governo russo decidiu divulgar esta semana imagens da "casa dos horrores", recordando que Anatoly Moskvin levava os corpos para casa transformando-os em múmias, e vestindo-os com vestidos e meias para que parecessem bonecas ou ursos de peluche. Contam os jornais que o historiador russo (que fala 13 línguas diferentes e foi descrito em tribunal como um "génio") dava nomes a cada um dos corpos e organizava-lhes festas de aniversário.
Este tipo de histórias mórbidas e doentias traz-me sempre à memória o poema-assinatura com que o sérvio naturalizado norte-americano Charles Simic abre o seu penúltimo livro de poemas "Master of Disguises" (Houghton Mifflin Harcourt, Nova Iorque, 2010), intitulado "The Invisible One" onde, aludindo a um caso igualmente doentio coloca a ênfase no isolamento extremo a que se votou o eremita contemporâneo, tanto quanto no subjectivismo a que o narciso pós-moderno se lançou (cf. Gilles Lipovetsky), numa sociedade alheada e individualista em que um vizinho não chega realmente a conhecer o seu próprio vizinho:
"You read about a child/ Kept for years in a closet/ By his crazy parents/ On a street you walked often// Busy with your own troubles/ you saw little, heard nothing/ Of what was said around you,/ As you made your way home// Past loving young couples/ Carrying flowers and groceries,/ Pushing baby carriages,/ Hanging back to scold a dog." ("Leste acerca de uma criança/ Mantida durante anos num closet/ Pelos seus pais insanos/ Numa rua por onde passavas frequentemente// Ocupado com os teus próprios problemas/ Pouco viste, nada ouviste/ Do que era dito em teu redor/ Enquanto regressavas a casa// Passando por jovens casais amorosos/ Transportando flores e mantimentos/ Empurrando carrinhos de bebé/ Puxando a trela para repreender um cão."
Numa linguagem simples e aparentemente directa, o que Simic nos está a tentar dizer - porque um poema é sempre (e somente) uma tentativa - é que o casal de pais insanos (mencionado na primeira estrofe) que durante anos fechou o filho (?) num closet - de uma casa banal, numa rua normal - é um casal que em nada se distingue de qualquer um dos outros jovens casais amorosos (a que a terceira estrofe alude) com quem todos os dias nos cruzamos na rua, insuspeitadamente transportando elevados signos de beleza (flores), bem-estar (mantimentos) e inocência (bebés), e cujo único gesto de adivinhada violência é a anódina repreensão pública de um cão, através do gesto de puxar firmemente a sua trela. Nada mais do que isso. Em nada mais do que isso, violentos.
Mas, será apenas isso o que o poema diz? Como em toda a boa poesia, a voz que fala é tanto mais relevante quanto a voz que cala, sendo o dito tão importante quanto o não dito, ou seja, o que o silêncio em branco entre as estrofes (não) diz é decisivo: é que numa sociedade contemporânea onde é tão frequente a ocultação e a mentira - porque é tão fácil mentir - não há forma alguma de fiscalizar o último reduto da mente humana, seja ela benigna ou perversa, restando apenas - e esse é o preço a pagar pela liberdade - confiar nos membros da sociedade, e acreditar que aquilo a que se convencionou chamar de "consciência colectiva" - esse secular bom senso comum ancorado em honra e dignidade - possa prosperar, na boa-fé de que a educação cívica prolifere também para construir uma sociedade justa e honesta onde sobressaiam os valores da verdade e da honestidade. Não há qualquer outra ordem ou controle ou força ou vigia Orwelliana que possa mais do que isso.
Perceber que, em última instância, dependemos do livre arbítrio do nosso vizinho é uma descoberta terrível.
joaoluisguimaraes@mail.telepac.pt