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Agora sou repórter da arte alheia. Vou contar um livro que vi nascer das mãos de uma pintora.
Um rapaz de cinco anos veste um pijama não excessivamente engomado. Quanto a conforto, a cama é quase um berço, mas o rapaz não consegue dormir. Nas camas confortáveis como berços, há alguns armários abertos de onde parecem sair lobos. Muitas vezes, as crianças aconchegam-se aos medos.
O rapaz chamado José nasceu das mãos da Mafalda d’Oliveira Martins, e delas nasceu também um coelho azul chamado Bolacha que pergunta: “Continuas acordado? Mas pareces tão cansado.”
Ao contrário da ilustração digital - muito em voga hoje - o rapaz e o coelho viajaram da cabeça desta pintora directamente para os braços (passando-lhe pelo pescoço e pelos ombros também), e dos dedos chegaram até ao papel em tintas acrílicas. Longe do digital, estes dois personagens são pintura do reino analógico, onde ainda há carne e osso e tentativas falhadas que não se corrigem com reset.
Ser repórter de uma pintora que se ama dá nisto, já perceberam. Umas frases literárias que falando na verdade de outras coisas se esforçam por falar de pintura. Eu em pintura sou inculto, mas noutras coisas tenho alguma escola da vida, embora não soubesse, até agora, que a arte de outra pessoa podia ser quase minha.
Aqui a Mafalda reclama porque o quase é uma distância intransponível. O livro é todo dela, eu só o vi de muito perto quando era uma ideia, quando era um esboço, depois uma ilustração, a seguir uma história e então um livro que até tem capa dura. Vi de perto o suficiente para saber que há sítios aonde nem os que se amam vão juntos.
Ainda assim, procuraria em todas as livrarias, comprar-lhe-ia todos os exemplares. O leitor não eu (a absoluta maioria das pessoas) nunca sentirá semelhante intimidade com a história. Resta-lhe o consolo de um livro maravilhosamente pintado onde vai descobrir se o coelho sempre ajudou o rapaz a adormecer.
Quem diz rapaz diz rapariga, diz os muitos filhos por essas casas fora que demoram a adormecer e que podem ser ajudados pelo coelho Bolacha. Mas quem mais vai adormecer com o embalo desta pintura, desculpem lá, são os nossos filhos, os da Mafalda e meus - esses, que ainda não existem mas que nos pedem todos os dias para nascer.
“Conta bem que o sono vem” (Livros Horizonte), de Mafalda d’Oliveira Martins, chegou ontem às livrarias. Podem dizer que isto não é uma reportagem da arte alheia, e que mais parece publicidade. Felizmente, quem se queixa de publicidade deste calibre tem bom remédio: vá comprar o livro e está perdoado.
O autor escreve segundo a antiga ortografia
*Escritor