O convite aos senhores juízes do Tribunal de Contas (TC) segue implícito: oferece-se visita ao país real, o país daqueles quem vivem e sobrevivem fora da geometria do Campo Pequeno e de outros Paços em volta.
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Qualquer juízo que esteja informado de pretensa legalidade e desinformado de boa-fé, só pode assumir os Passos Perdidos como o seu fim último. Eis o destino onde até se legisla pelo corredor afora, centralismo. Não há justiça alguma quando a justiça não se materializa no tempo. Saber da realidade deveria ser imperativo para quem se arroga decidir pelos destinos dum país que é, cada vez mais, uma manta de retalhos de desigualdades. Dessíncrono, atávico, rendilhado a uma filigrana de interesses que se sobrepõem ao bem comum. Particularmente, ao bem daqueles que não moram ao lado da sua cómoda vizinhança.
O veto do TC à requalificação do antigo Matadouro Industrial do Porto é mais um triste episódio de uma série já vista e revista, gasta e serôdia, sobre um país comandado à distância por um jogo de robertos iluminados pela santa sentença. Não muito distantes vão os tempos em que Fernando Gomes, então presidente da Câmara do Porto a caminho da reeleição, apelidava o TC como "um quisto no funcionamento da democracia". Foi há cerca de 25 anos e desde então pouco mudou. Meses de gozação até ao veto final. Quando uma decisão se arrasta assim, durante meses até à última hora do prazo, é o jugo legal que se confunde com o jogo político. E assim se mata o mais decisivo e inovador projecto para a destruição do muro de Berlim que ainda separa a zona Oriental da zona Ocidental do Porto. Assim se abate à distância, sem dó nem aparente remorso, o mais determinante projecto de integração, inclusão e combate à desigualdade e às assimetrias sociais na cidade e no país. Sem pingo de vergonha pelo processo e timing da decisão.
Campanhã, freguesia da cidade do Porto, está à vista para quem a conhece. É feita granito e parou. Parou há muito. Com gente de coração aberto que não fica à espera mesmo quando está cansada de esperar. Faz parte de uma geografia de limites, menosprezada pelo rumo que sempre preferiu fazer-se ao mar, espelho de água reflexo de um país que nunca vai ao encontro do seu interior. Assim é e foi assim. Tanto tempo, tempo demais, até na cidade.
Nas contas que contam, aquelas que se fazem no fim, há-de constar uma conta que todo o país vai pagar em forma de factura arquivada no dossier do arquivo central da metrópole. Desagregamo-nos aos poucos, perdemos confiança nas instituições, acabaremos a soletrar "populismo" com mais ou menos pronúncia. Lutar-se-á com a revolta contra a arrogância. À medida que subalternizamos a vontade de um povo, condenando-a à vontade e ao desrespeito dos gozadores do reino, traçamos o fim do nosso destino comum. Será o fim da democracia. Não seremos cúmplices. Não seremos parceiros, não seremos solidários. Será então evidente que não pertencemos ao mesmo lugar.
*Músico e jurista
o autor escreve segundo a antiga ortografia