No debate do Orçamento Geral do Estado, a Direita acusou a ministra da Cultura de não incluir as touradas entre os beneficiários do escalão mais favorável do IVA, por uma questão de gosto! A taxa de 6% de IVA aplica-se a atividades artísticas como o bailado, a música ou o teatro. Se tal decisão tivesse sido motivada pelas preferências subjetivas da ministra, como afirmou a Direita, a acusação seria grave. Porque é verdade que a política fiscal prossegue os mais variados objetivos, interfere com interesses privados, incentiva ou dissuade certas atividades, cria expectativas, promove ou inibe estas ou aquelas condutas. Mas deve decidir sempre com base na identificação de um interesse público concreto, naturalmente, conforme a interpretação que dele faz a força política governante. É o caso do combate ao desemprego, dos incentivos à criação de riqueza, da defesa do meio ambiente, saúde, educação, da inibição do tabagismo, da prevenção e punição da violência doméstica ou, em geral, da estratégia de luta contra as desigualdades sociais.
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Efetivamente, o Orçamento Geral do Estado condiciona a concretização de todas as políticas públicas e por isso mesmo, após longos meses de preparação pelo Governo, o debate e a aprovação do Orçamento monopoliza quase toda a atividade parlamentar durante mais de um mês. E é óbvio que não foi por capricho que o Governo entendeu excluir as touradas do âmbito da discriminação positiva reconhecida às atividades artísticas contempladas no escalão da taxa de 6% do IVA. Foi sim uma opção política, coerente com as orientações que o Governo e a maioria parlamentar têm vindo a seguir em matéria de combate à cultura de violência, desde a esfera familiar, escolas e esquadras de polícia até à proteção dos animais de circo e animais domésticos. Entendeu o Governo - e muito bem! - que as touradas deviam pagar os mesmos 12% de IVA que pagam os concertos, os festivais e outros espetáculos a céu aberto que com mais facilidade atraem agentes publicitários e instituições interessadas na sua promoção. Foi apenas isto!
Ao contrário do que a Direita tenta insinuar, as touradas não foram proibidas, ainda que a sua extinção seja francamente desejável de um ponto de vista humanístico e civilizacional. É claro que a sofisticação e a ritualização simbólica das artes da tauromaquia constituem um inegável património cultural que deve ser preservado. Mas preservar a sua memória - como os pelourinhos, os cintos de castidade, as armas utilizadas nos torneios medievais, os cerimoniais de tortura do Santo Ofício - não significa perpetuar as respetivas atividades, nem ocultar a brutalidade sanguinária desse espetáculo público e a céu aberto que, pelo menos, há muito devia ter sido interdito a menores de idade.
Embora legalmente proibida, a violência doméstica persistiu na sociedade portuguesa como uma prática tolerada até muito recentemente. Uma tolerância que pretendiam justificar com o respeito pela reserva da intimidade privada e a proteção da família enquanto núcleo essencial da sociedade. As primeiras políticas adotadas contra essa "tradição ancestral" contam pouco mais de 20 anos! Tal como o apedrejamento das mulheres adúlteras nos relatos bíblicos, os açoites medievais no pelourinho das aldeias, os autos de fé da Santa Inquisição, a tortura, a pena de morte e a prisão perpétua, as praxes académicas, também as touradas são uma exibição desumana da mais cruel brutalidade. Entre os seus aficionados contam-se, lamentavelmente, muitos titulares de cargos políticos e autoridades públicas. E é só por isso que parece insensato proibi-las. Resta esperar que a cultura e o progresso da humanidade possam induzir a sua gradual extinção. Estranha-se por tudo isso que a Direção do Grupo Parlamentar do Partido Socialista venha agora secundar os ressentimentos da Direita.
* DEPUTADO E PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL