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Às armas, às armas, pela Pátria lutar, contra os canhões, marchar, marchar! Talvez já se tenha interrogado sobre as razões do estranho e cru belicismo suicida da passagem mais tonitruante do nosso Hino Nacional. O caso não é para menos. A interrogação faz todo o sentido, pois mesmo em 1890, quando ele foi escrito e composto, marchar contra os canhões era uma idiotice pegada. Henrique Lopes de Mendonça, o autor da letra original, não era um estúpido. Trata-se de um remedeio. A Portuguesa começou por ser um hino de protesto contra capitulação de D. Carlos face ao infame Ultimatum britânico, e por isso fazia sentido que a estrofe mais poderosa apelasse à mobilização contra os falsos amigos ingleses: Às armas, às armas, contra os bretões, marchar, marchar!
Descontinuada a vida de D. Carlos e instaurada a República, foi retirada do hino a referência à nossa justa irritação com os ingleses, e o melhor que se arranjou foi substituir bretões por canhões. Um remendo mal feito, até porque quem o fez não estava preso a uma rima. Esperava-se mais de um membro do nobre povo, até porque não me parece que haja míngua de gente (os corruptos, por exemplo) contra quem se justifique marchar e pegar em armas.
Não é com adaptações esfarrapadas, como a dos "bretões" reconvertidos à pressa em "canhões" que se levanta de novo o esplendor de Portugal. Teria sido melhor não mexer, deixando ficar os bretões na letra, para lembrar a pulhice inglesa de nos obrigar a sacrificar o sonho do mapa cor-de-rosa no altar do seu projeto de controlar a espinha dorsal de África e construir a linha de caminho de ferro Cairo-Cidade do Cabo.
Os "bifes" sempre foram uns Judas e nós, crédulos, acreditámos nessa treta dos velhos aliados e fomos burros ao ponto de nem sequer aprendermos com o que eles diziam - "A Inglaterra não tem inimigos permanentes, nem aliados permanentes, mas interesses permanentes", doutrinou Disraeli, primeiro-ministro nos tempos idos do esplendor de Inglaterra.
O Império britânico onde o sol nunca se punha já passou à História. Desses tempos resta apenas um reino europeu unido por cuspo, de onde os irlandeses conseguiram sair à custa de muito sangue derramado a marchar contra os canhões dos bretões (e do sacrifício de seis condados do Norte), e de onde os escoceses têm uma oportunidade única de ser evadir pacificamente, pelo exercício do direito ao voto.
Depois de amanhã, os 4,3 milhões de eleitores residentes da Escócia têm ao alcance de uma simples cruz no quadrado certo não só a possibilidade de controlar o seu próprio destino, mas também de darem o pontapé de saída no redesenho do geografia da Europa, dando um novo fôlego ao processo soberanista catalão e clarificando a situação na União Europeia ao abrir a porta à saída de uma Inglaterra, que assim poderá cumprir finalmente a vocação de se encarregar da representação política, económica, militar e diplomática da sua antiga colónia americana neste lado do Atlântico, ou seja assumir-se como uma espécie de 53º estado dos EUA.
O desfecho do referendo de quinta-feira é imprevisível. Mas seria uma pena se os escoceses não seguissem o conselho de Sean Connery e de Willie, o contínuo da escola nos Simpsons, de votar Yes e desperdiçassem assim uma oportunidade que só surge uma vez na vida de ocuparem o seu lugar no Mundo, em pé de igualdade com a Inglaterra, e de serem os agentes ativos na mudança e clarificação de que a Europa precisa. Aye or die.