Nestes últimos anos as comemorações oficiais da revolução de Abril resumem-se à sessão solene na Assembleia da República presidida, pelo Chefe de Estado. O discurso do presidente tem sido o seu ponto alto, pela expectativa que Cavaco Silva tem sabido criar ao utilizar a cerimónia para dizer aquilo que a gestão dos seus silêncios não permite conhecer.
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Nem sempre as consequências do seu discurso são evidentes. A interpretação que os partidos fazem das palavras do presidente são, muitas vezes, moldadas à sua própria conveniência em leituras que chegam a ser contraditórias. Mas este ano - tal como há dois anos, no discurso da sua segunda tomada de posse - não resta margem para dúvidas que suscite qualquer especulação interpretativa.
O discurso do presidente da República tornou, agora, tudo bem mais claro. De um lado temos um Governo que não conta com o apoio da grossa maioria dos portugueses (como o demonstra a totalidade dos estudos de opinião publicados), mas que passa a contar com o suporte do presidente; do outro, temos toda a oposição unida contra o Governo e também contra o presidente. As águas estão, agora, claramente separadas. Se o objetivo do presidente da República era ganhar espaço para promover consensos entre o Governo e o Partido Socialista, falhou rotundamente. Ao não se levantar nem aplaudir as palavras do chefe de Estado na cerimónia da Assembleia da República, o PS disse de forma ruidosa o que pensava.
A verdade é que este seu discurso é, em si mesmo, uma contradição. Por um lado, louva a ação do Governo e o seu esforço para a consolidação do sistema bancário, enaltece os objetivos alcançados e o equilíbrio das contas externas, "resultado que não era atingido desde há muito". Por outro, procura cativar a oposição reconhecendo "o agravamento do desemprego e o aumento do risco de pobreza, em resultado de uma recessão económica cuja dimensão ultrapassa em muito as previsões iniciais".
O presidente queria ter sol na eira e chuva no nabal. Não pode. Quis contribuir para promover consensos e consolidou a rotura. Aliás, depois de na mensagem de Ano Novo ter zurzido o Governo e após ter enviado o orçamento para fiscalização sucessiva do Tribunal Constitucional, repito hoje uma vez mais, parece que Cavaco Silva ficou com má consciência. Parece ter ficado receoso de poder vir a ser acusado de desencadear uma crise política. A ponto de, logo a seguir, vir em socorro de Passos Coelho com a estranhíssima avaliação de que o Governo ficou relegitimado com a moção de censura apresentada pelo PS. A moção de censura, ao não ter sido aprovada no Parlamento foi, afinal para o presidente, como que uma moção de confiança ao Governo e às suas políticas. Com esta tomada de posição, o que além do mais ficou claro foi que o presidente não intervirá em nenhuma circunstância enquanto se mantiver formalmente a coligação governamental. Ao contrário do que foi a sua atitude há dois anos, quando empurrou o Governo Sócrates para a demissão, Cavaco Silva é agora um defensor da estabilidade a todo o preço.
Neste enquadramento, pretender que o Partido Socialista se solidarize com as políticas desastrosas seguidas por Coelho e Gaspar é pura loucura. Que espaço deixaram ao PS para ser parte dos consensos para que se apela? Nenhum.
O Partido Socialista é a única alternativa a este Governo. E é essencial em democracia que exista uma alternativa a que os portugueses possam recorrer e que tenha do país uma visão diferente daquela que nos está a enterrar vivos. O presidente da República perdeu toda a autoridade para promover entendimentos entre o Governo e o maior partido da oposição. Foi ele quem se autoexcluiu.
Resta ao PS prosseguir o seu caminho, constituindo-se uma alternativa credível, consistente, criadora de esperança para o futuro por forma a merecer a confiança dos portugueses. Na abertura do congresso socialista, Seguro disse o que tinha a dizer, contendo o discurso nas referências ao presidente da República. Fez bem. Quem se afirma como alternativa de governo não ignora que mais do que as pessoas que temporariamente desempenham os cargos valem as próprias instituições democráticas.