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E.,uma frágil criança de cinco anos evacuada oficialmente da Guiné-Bissau para tratamento médico em Portugal, está há meses sob responsabilidade de uma excecional e voluntária cuidadora informal.
Aguarda cirurgia cardiotorácica num hospital português, onde é seguida desde agosto de 2016.
Desde então que não tem número do SNS, que existe sem existir, embora estando inscrita, colocando imensas dificuldades de gestão clínica a uma cuidadora que, de Herodes para Pilatos, sofre as agruras de querer ajudar uma criança "contra" um SNS de complexidades e burocracias.
Na passada quinta-feira, depois de uma consulta com a cardiologista no hospital e de estar na posse da prescrição e do medicamento prescrito, dirigiu-se aos cuidados de saúde primários para a administração mensal do tratamento injetável de penicilina.
Nas palavras da cuidadora, o que se passou foi surreal, pelo que vou evitar os pormenores, que nem sequer são o mais importante. Não foi fácil, visto que a criança não tem número de SNS nem médico de família atribuído.
"Que fosse ao hospital", disseram-lhe... Mas ela já vinha do hospital... Há muitos doentes/cidadãos que conhecem bem esta saga.
Desesperada com tudo, a ver as horas passar e com reuniões marcadas, a cuidadora tentou ela própria fazer a ponte entre os cuidados de saúde primários e o hospital. Após 15 minutos de chamada, nada se resolveu no pingue-pongue... Teria de voltar no dia seguinte...
Felizmente, um médico de família passou por acaso e assumiu a responsabilidade da administração da penicilina à criança, que correu bem e sem problemas.
Infelizmente, sei que este caso não é único. Estas dificuldades têm sido criadas a mais crianças, cuja evacuação é autorizada mas que aterram em Portugal num tremendo limbo jurídico, colocando uma imensa sobrecarga nos cuidadores e nos próprios profissionais de saúde, muitas vezes obrigados a recorrer a expedientes para resolver problemas humanos e de saúde/tratamento inadiáveis e graves.
Como é possível que uma criança venha para Portugal para ser tratada no SNS, com as devidas autorizações, e não estejam resolvidos, por parte da DGS, todos os constrangimentos burocráticos e jurídicos?
A cirurgia, essa, está em modo de demorar (a lista de espera é grande...) pelo que a cuidadora, com a ajuda de pessoas de boa vontade, procura adaptar o mais possível o quotidiano da miúda para responder às suas necessidades.
Cuidar de uma criança doente, deslocada da sua família e da sua cultura, com a consciência que o que tem e as consequentes complicações são fruto da pobreza e do difícil acesso à saúde, é muito exigente.
O que se espera de quem de direito é que não acrescente às dificuldades. Será possível olhar a cooperação em saúde com as crianças da Guiné-Bissau de uma forma mais amiga de doentes e cuidadores?
* MÉDICO