Coloque a sua imaginação a duzentos à hora. Suposição: tem o pedido de licenciamento de uma obra entupido num serviço do Estado dos muitos de cujo parecer depende. O funcionário, erguendo o pescoço por entre uma quantidade infindável de processos, acaba amolecido e por prometer retirar o seu dossiê do amontoado graças a um GPS dos baratinhos com que lhe acena - prendando-o mesmo. Eureca! O tipo é diligente, preenche um formulário a dar conta da recepção da prenda - inferior a 150 euros - que nunca mais o desorientará a caminho do infantário ou da casa dos sogros e continua impávido e sereno à espera, fora dos trâmites normais, de ser diligente para o próximo cidadão exasperado com a burocracia.
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Um cenário assim, através do qual se trafica influência a preço de saldo, faz sentido? Não, não, não. Três vezes não.
Perante tamanha negativa, só pode ser de espanto a preparação de uma lei-quadro, anunciada pelo Ministério da Justiça, "para a criação de um Código de Conduta e Ética para a Administração Pública", susceptível de chegar um dia destes à mesa do Conselho de Ministros.
O pressuposto é estapafúrdio. O Ministério coloca preto no branco a ideia de que "este Código de Conduta estabelece que as ofertas de bens recebidas em virtude das funções desempenhadas deverão sempre ser registadas e não exceder o valor máximo de 150 euros". Ou seja: de algum modo dá o visto bom à "transumância", embora estabelecendo-lhe um preço (deduz-se não ficar consagrada em letra de lei uma dedução de IVA destinado a encher os cofres do Estado).
Pugnar por uma sociedade bacteriologicamente pura poderá ser do domínio do virtual. Não deve é deixar de ser um objectivo a perseguir, só possível se em nenhuma circunstância se abrirem linhas de fuga de princípios inegociáveis. E o tráfico de influências é hoje um flagelo para o qual é uma estupidez estabelecer graduações.
Assim como assim, o país já vive em demasia sob o espectro da afamada cunha para tudo e mais alguma coisa. Fica difícil entender como é possível alguém estar a equacionar a hipótese de formalizar brechas - a oferenda caricatural de um GPS é transmissível a um estojo de beleza para a madame funcionária pública ou companheira do decisor ou de quem lhe leva os papéis ou mete em sistema informático os processos carecidos de deferimento. E se alguém tem dúvidas sobre o jeitaço, basta imaginar a profusão de prendas possíveis a troco de 150 euros incluindo a nova moda aberta a tudo, a dos cartões ou cheques--prendas!
Está a ser engendrada uma lei absurda, em contraponto ao estatuto disciplinar dos trabalhadores da Função Pública, que prevê a pena de despedimento para funcionários que, "em resultado da função que exercem, solicitem ou aceitem, directa ou indirectamente, dádivas, gratificações, participações em lucros ou outras vantagens patrimoniais, ainda que sem o fim de acelerar ou retardar qualquer serviço ou procedimento".
Decididamente, convém fazer abortar um tremendo disparate - este indesculpável e sem direito ao argumento do memorando da troika para funcionar como guarda-costas. Viabilizar as prendas só agravará o último estudo elaborado no âmbito da Comissão Europeia e segundo o qual 97% dos portugueses consideram a corrupção um dos grandes problemas do país...