De entre as memórias da minha remota infância, sobrevive com intensa nitidez o rosto aflito de uma mulher carregando um cesto de verga que não conseguiu entregar, em frente à porta da nossa casa que se fechava sobre ela: "não se inquiete. Será feito o que for devido!"
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Esta explicação não pareceu reconfortar a mulher do recluso que aguardava a concessão de liberdade condicional pendente da apreciação favorável do meu pai que por muito tempo dirigiu os serviços de assistência social na antiga Cadeia da Relação do Porto. Pelo contrário, crescia a deceção à medida que a porta se fechava sobre o seu patente desamparo.
Só mais tarde percebi o que suscitava tanta incomodidade e inusitada frieza, quando percebi também que a fragilidade das instituições públicas inevitavelmente estimula antiquíssimos instintos e práticas arcaicas que prontamente se acomodam sob o manto diáfano da modernidade. Uma velha anedota, do tempo dos primórdios do poder local democrático, esclarece com inspirada ironia este aparente paradoxo. Os vereadores de certa Câmara teriam adquirido viaturas pessoais de uma conhecida marca de automóveis e esta, grata pela preferência, resolveu oferecer gratuitamente os autocarros para os transportes municipais. Vícios privados, públicas virtudes...
A corrupção é sintoma de um "comportamento desviante" umbilicalmente associado, desde sempre, à própria titularidade do poder. Embora seja mais facilmente percetível nas relações de proximidade, pelo contrário, a sua dimensão e gravidade crescem na proporção direta do poder que a consente e da distância que a dissimula. Os autocarros estão para as autarquias como os submarinos para o Governo da nação e a especulação financeira para os mercados internacionais e os paraísos fiscais. A corrupção, porém, não se limita a desviar recursos comuns para interesses particulares. O mais grave é que a corrupção, tal como a prepotência, tornam a autoridade ilegítima e enfraquecem o Estado, diluindo a fronteira entre o público e o privado - uma distinção que sustenta as democracias constitucionais do nosso tempo e que se pensava capaz de arrumar o "público" e o "privado" em territórios inconfundíveis.
Contudo, a verdade é que a confusão foi alastrando, dando azo a uma regulamentação cada vez mais intrusiva nos comportamentos individuais que sacrificou a autonomia ética e a responsabilidade individual à definição legal de crimes e contravenções em acelerada expansão: do abuso sexual à luta contra o tabagismo, segurança alimentar, prevenção de epidemias ou suspeitas de terrorismo. Desde os anos oitenta, com o triunfo de Reagan, Margaret Thatcher e a ajuda de Tony Blair, iniciou-se o processo inverso da ofensiva contra o Estado, com a desregulação da economia, a liberalização das relações de trabalho, a privatização da rede empresarial do Estado nos setores estratégicos nacionais e o desmantelamento dos serviços públicos nas áreas da saúde, educação ou proteção social. O que antes se considerava privado agora tornou-se público e o que era público, entretanto, privatizou-se. Onde se imaginava existir uma clara linha de demarcação, instalou-se uma licenciosa promiscuidade que apenas reconhece como limite a completa abolição do Estado que arraste consigo os valores, os princípios e as instituições que o direito e a democracia sobre ele edificaram arduamente.
O caos, como ensina a História, é o destino fatal de um poder político que não consiga travar a corrupção e a prepotência. Pela primeira vez, o desafio coloca-se à escala planetária e por isso a resposta só pode ser encontrada numa ordem internacional cosmopolita e na organização democrática de uma comunidade política que saiba distinguir o público do privado e determine o seu ponto de equilíbrio entre o bem comum e o interesse individual.