Cortes, cortes, cortes
O atual Governo da República Portuguesa não conhece fronteiras. Primeiro, escancarou o Memorando de Entendimento com a troika, assumindo-se como o aluno que, além de aplicado e obediente, faz questão de levar a pasta do professor. Agora, rompeu com os limites do Acordo Ortográfico e entrou pela semântica, promovendo o "transitório" ao estatuto do "irrevogável": é, mas não é. Se uma demissão dita irrevogável pode afinal ser revogada, por que razão um corte de pensões dito transitório não pode ser permanente? Simples.
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Quem não vê simplicidade em tudo isto são os portugueses, sobretudo aquela parcela que constitui afinal o alvo cirurgicamente selecionado para o jogo dos dardos a que os senhores ministros e secretários de Estado se têm laboriosamente dedicado. Falo dos reformados, pensionistas e dos funcionários públicos. Passos Coelho decidiu há cerca de três anos que os mandriões que enterraram o país foram os velhinhos que hoje auferem uma pensão média antes de impostos de 556 euros, os funcionários públicos que levam para casa umas centenas ou poucos milhares de euros, a troco da desprestigiada tarefa de realizar e defender o interesse público. Assim, há que castigar e, nesta matéria, não basta cortar direitos ou rendimentos. Impõe-se aterrorizar, instabilizar, alimentar o clima de incerteza que poderá, quem sabe, levar mais alguns a emigrar e outros a desistir da vida.
Entretanto, não se vislumbra um especial empenho do primeiro-ministro e dos seus ajudantes de campo na responsabilização de outros atores da nossa trajetória descendente. A brincadeira do BPN, as PPP de rentabilidade gorda e garantida, as generosas rendas da energia, os contratos multimilionários do Estado com a banca e com os escritórios de advogados, para referir apenas alguns dos males da nossa desgraça, têm em comum dois pormenores que fazem toda a diferença. Primeiro, envolveram montantes extraordinários, que só por si representariam uns bons pontos percentuais de descida do défice orçamental; depois, beneficiaram interesses privados, gerando dividendos, salários e benefícios que fizeram o seu caminho no setor privado.
Entre a função pública já condenada a pena máxima e os interesses privados ilibados de culpa, quiçá por falta de provas, existem ainda alguns intocáveis, que beneficiam do melhor de ambas as partes. São os assessores da classe política, os técnicos do Banco de Portugal, os dirigentes de algumas empresas públicas, todo um exército silencioso que, intervindo na esfera pública, não deixa de ter estatuto à parte, o que significa que essas minudências como cortes de subsídios, aumento de horários de trabalho ou limitações salariais não se lhes aplicam.
Esta formulação do quadro de condenação é a maior injustiça da história do Portugal no pós-25 de Abril. Foi preciso esperar 40 anos para sermos presenteados com um líder cuja imagem de marca é ser forte com os fracos e fraco com os fortes. A linha de "correção" dos desequilíbrios das contas públicas adotada pelo primeiro-ministro visa o empobrecimento generalizado das pessoas e resultará na desvalorização de uma nação até ao ponto da humilhação. Tudo isto é o contrário do que Passos Coelho prometeu, quando em 2011 se apresentou como alternativa.
A transformação semântica que converte o provisório no permanente vai começar nas pensões e passará muito rapidamente para os salários dos funcionários públicos. Aliás, o exercício de confisco a título permanente começou já com o desavergonhado diploma que pretende aumentar os descontos para a ADSE de forma a garantir receitas que vão muito para além das necessárias para a sustentabilidade do sistema.
Corte, cortes, cortes, esta é a assinatura do Governo PSD/CDS. Das reformas, nem que sejam as que constam daquele guião sofrível que Paulo Portas apresentou ao país, nem sinal. Sobre o crescimento, aquele processo que faz crescer a economia e a riqueza a distribuir, a governação revela simplesmente um autêntico deserto de ideias.