Nos anos 90, Javier Echeverría, através das obras Telépolis e Cosmopolitas Domésticos, ajudou-nos a compreender melhor de que modo podemos, a partir de casa, sentirmo-nos cosmopolitas. Bastava saber usar (bem) os média.
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Por estes dias, confinada ao espaço privado, regresso abruptamente ao espaço doméstico. De forma plena. A tecnologia continua a determinar grande parte do meu quotidiano, mas agora percebo que há uma dimensão do domínio doméstico que nunca se apagou. Antes se transferira para outros lugares ou pessoas. De forma artificial.
Confesso que ando confusa. Perco-me nos dias da semana e enredo-me no tempo em que faço certas tarefas. No entanto, aquilo que mais me baralha é o ajustamento de fronteiras entre as esferas pública e privada. O ambiente de trabalho entrou agora pela nossa casa adentro e, com ele, pessoas que, através das ligações por vídeo, ali estão a observar um contexto familiar a que nunca acederiam não fossem estas circunstâncias excecionais.
Outra aprendizagem tem a ver com o permanente deslizamento entre o que Echeverría chamava cosmopolita e doméstico. Na mesma manhã, posso arrumar quartos, preparar uma máquina de roupa para lavar, fazer o pequeno-almoço e seguir, na porta ao lado, para sessões, via Skype, com os meus alunos ou com colegas de outras universidades, olhando sempre para o relógio, porque há um almoço para confecionar... Como companheiro das minhas jornadas de trabalho, tenho o meu filho de 7 anos que, na mesa contígua à minha, vai fazendo cálculos matemáticos, interpretação de texto ou redações, pontuando as minhas ligações por vídeo com expressivos acenos para a câmara do computador ou sussurrando-me em permanência perguntas para saber se as contas estão certas ou como se escreve determinada palavra...
A porosidade de linhas entre público e privado e a justaposição de perfis cosmopolitas e domésticos impõem-me múltiplas reflexões. Afinal, todos estes domínios não são assim tão longínquos uns dos outros. Com janelas de vídeo rasgadas a partir do meu computador, eu própria assumo uma certa informalidade na roupa, nos gestos e nas conversas. Todos se sentem mais próximos uns dos outros. Tratando da vida doméstica nos intervalos dos meus afazeres profissionais, dou comigo a valorizar um trabalho que me parecia periférico e assumir tudo de forma natural. E com o meu filho em casa, sinto-me ainda mais responsável pelo seu bem-estar. Tudo isto muda-nos por dentro. Para sempre.
Professora associada com agregação da Universidade do Minho