Corpo do artigo
Depois de onze semanas de bloqueio de Israel à ajuda humanitária, na Faixa de Gaza morre-se à fome. E a bombardeamentos, a ataques de artilharia, a incêndios e a todo o tipo de morte de uma guerra.
Parece que académicos especialistas na matéria decidiram, por fim, que um genocídio é um genocídio, mas em Gaza a situação humanitária piora de dia para dia, chamemos-lhe nós genocídio, massacre, limpeza étnica, extermínio, chacina, matança, mortandade, aniquilação, morticínio ou banho de sangue.
Embora Gaza nos entre pelas notícias, permanece um mapa distante que sofre de todas as distâncias: culturais, religiosas, económicas, políticas – condições perfeitas para que os mortos de Gaza continuem a não ser os nossos mortos.
Esta semana, circulou um vídeo de um bombardeamento de Israel a uma escola no bairro de Al Daraj, na cidade de Gaza, que servia de abrigo a centenas de refugiados. Morreram dezoito crianças.
Nas imagens, vê-se uma criança de cinco anos, se tanto, a fugir das chamas. Dá os passos pequenos dos bebés, desequilibra-se, levanta o braço para contrabalançar, saltita entre os escombros. Vemo-la de perfil, em contraste com as chamas, perdida no meio de um edifício prestes a derrocar. Não sei se sobreviveu.
Ao vê-la, pensei que aquele edifício em chamas tanto ficava em Gaza como na Europa, nos Estados Unidos, em África. Pensei que aquela escola ficava em qualquer sítio da humanidade. Algo confuso, procurei-a cá, como se localizá-la em Portugal aproximasse aquela criança.
Num mapa, sobrepus a Faixa de Gaza à região de Lisboa. O Norte fica no Carregado, descendo a zona mais estreita do enclave ao largo do Tejo (Castanheira do Ribatejo, Vila Franca de Xira, Sacavém...), até se alargar na cidade de Lisboa, tocando o Sul do território em Almada. A região mais larga ocupa toda a cidade de Lisboa, mais um pouco da Amadora (não chega a Massamá). Rafah ficaria em Carnaxide e, a leste da Ponte 25 de Abril, o Tejo delimita Israel praticamente na perfeição.
De acordo com esta justaposição, o centro da cidade de Gaza ficaria em Vila Franca. A escola bombardeada no bairro de Al Daraj bem podia ficar a trinta minutos do escritório confortável onde escrevo.
Mas a criança, ao imaginá-la nesta proximidade, como se falasse português, não me pareceu mais nossa, mais minha, nem a urgência de a ajudarmos maior. As crianças são crianças em qualquer mapa, nossas filhas em qualquer região. Contudo, nada temos feito por elas – nem sequer o simples acto simbólico de reconhecer o Estado da Palestina.
O autor escreve segundo a antiga ortografia